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Nina Lemos

Na vida real, "quarto da Gleice" do BBB poderia destruir o mundo

Nina Lemos

11/03/2018 15h46

Há milênios, estava estudando com uma amiga e vi no computador dela um e-mail com meu nome no título. Abri. Era outra amiga falando coisas terríveis de mim. Nunca superei aquela mensagem. Quase 20 anos depois, ela ainda me persegue. Nunca falo sobre isso. Virou trauma. "A curiosidade matou o gato", diz o ditado, e, naquele caso, quase me matou de tristeza, mesmo.

Lembrei de novo do meu pesadelo real ao acompanhar o momento "Black Mirror" do BBB18. A produção do programa, para quem não acompanhou, colocou uma das participantes, Gleice, em um quarto onde ela poderia ver tudo o que os outros falavam (dela e dos amigos). Três dias depois, ela voltaria para o programa (os colegas acharam que ela tinha sido eliminada) para tirar a forra.

A internet parou. "Parecia o jogo Brasil e Alemanha", disse meu amigo. O jogo é aquele onde perdemos de 7 a 1 e rimos de nervoso e fizemos piada sobre nós mesmo.

A "armação" da produção do programa me fez rir de nervosa também. Isso porque Gleice realizou o sonho de muitos, aqueles que sonham em ver o que falam deles em seus velórios. "Quero voltar para ver", eles dizem. Imagina poder voltar e ainda "esclarecer"?

Os voyers de si mesmo cometem masoquismos como dar Google regularmente com seu nome na internet ou invadir o celular do namorado para "dar uma olhada nas mensagens".

Depois de abrir aquele email, nunca mais fiz nada que me fizesse saber de mim ou dos meus amigos o que não falaram na minha cara. E, não, não pretendo aparecer no meu velório. E se estão falando mal de mim ou dos meus amigos, pelo amor de deus, que seja longe! Sabe aquele papo de que o que os olhos não veem o coração não sente? Pois é. O que não se escuta também. E whataspp com crítica "malvadinha" bom é aquele que a gente não lê!

O sonho de voltar e "tirar satisfação" tem a ver com sede de vingança. Afinal, quem mandou os outros serem falsos? E ai a direção do BBB deu um golpe de gênio ao criar esse novo experimento. A vontade de vingança é tão humana quanto a necessidade de respirar. Mas também pode ser destruidora (palavra de escorpiana).

Você gostaria de ter uma câmera ligada, por exemplo, no trabalho para ver o que falam depois que você sai? O que você faria com a informação de que falaram mal de você ou da sua turma mais chegada? Sairia gritando, apontando o dedo? Pode ser engraçado na TV.

Na vida real, sinceramente, o tal poder de "ver o ouvir" seria destruidor. De cara, todas as firmas e famílias correriam o risco acabar (e com barracos horríveis). Já pensou se tem um quartinho no escritório e você fica ali escondida ouvindo? Ou na casa da sua mãe?

Isso porque, desculpa dar essa real óbvia, mas todo mundo fala um pouco mal de todo mundo. Dos amigos de verdade, em geral, não. Mas quem nunca estava fazendo um comentário pelo MSN do Facebook e mandou sem querer para a pessoa de quem falava?

O falar mal, muitas vezes, nem é uma coisa pesada, péssima, é só falta do que fazer mesmo, falar demais também faz parte do ser humano. Mas esse comentário bobo pode magoar, muito.

Então, meu modesto desejo é que essa ideia de espiar o que falam fique só no reality. Na vida real, que a gente viva educadamente sabendo que todo mundo é um pouco falso mesmo. E você também é! Vai dizer que você não fala mal de algumas pessoas nem que seja por esporte? Somos humanos. Demasiadamente. Tanto que não resistimos a uma treta em um reality show.

Sobre a autora

Nina Lemos é jornalista e escritora, tem 46 anos e mora em Berlim. É feminista das antigas e uma das criadoras do 02 Neurônio, que lançou cinco livros e teve um site no UOL no começo de 2000. Foi colunista da Folha de S. Paulo, repórter especial da revista Tpm e blogueira do Estadão e do Yahoo. Escreveu também o romance “A Ditadura da Moda”.

Sobre o blog

Um espaço para falar sobre a vida das mulheres com mais de 40 anos, comportamento, relacionamentos, moda. E também para quebrar preconceitos, criticar e rir desse mundo louco.