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Nina Lemos

Chega de tratar mulher como mulher de alguém

Nina Lemos

06/04/2018 13h25

Antonia Pellegrino é roteirista. Foto: Reprodução/Instagram

Semana passada, a roteirista e escritora Antonia Pellegrino recebeu um telefonema de uma revista pedindo que ela desse uma opinião sobre a polemica série "O Mecanismo". Nada mais normal, afinal, Antonia é roteirista e já escreveu séries e filmes Ou seja, ela é uma expert

Alguns dias depois, ela levou um susto ao ler no site da revista "Veja" uma nota com o título: "Namorada do Freixo sobre a série de Padilha: é muito fácil ele morar em Los Angeles e escrever sobre o Brasil ." Sim, Antonia é também namorada do deputado Marcelo Freixo. Mas o que uma coisa tem a ver com a outra?

Ela reagiu publicando um post onde escreveu: "Sou roteirista há 14 anos, escrevi 3 filmes que somam mais de 5 milhões de espectadores, colaborei com 5 novelas, 7 seriados, livro publicado, fiz documentário, mas para a "Veja", numa matéria, sou resumida a "namorada do Freixo"

O assunto viralizou. Afinal, desde quando (e até quando?) vamos ser chamadas de "esposas de", "namoradas de"? Escuta, estamos em 2018.

Esse blog parou para pensar no assunto. Quantas professoras são conhecidas como a Vera do Renato? Quantas empresárias, casadas com empresários, não viram a Mariana do Walter? Quantas mulheres com carreiras super bem-sucedidas não são identificadas como propriedade de homens? E, espera, mesmo se elas não tiverem uma carreira e forem pessoas que trabalham exaustivamente como donas de casa e/ou mães, elas não são propriedades de ninguém. E, sim, elas são pessoas, indivíduos.

Não sou mulher de ninguém!

Antonia conta que essa não é a primeira vez que isso acontece com ela. "Já fui apresentada como namorada do fulano várias vezes. Desde garota eu detestei isso. Quando me apresentavam assim, eu sempre dizia: "não sou mulher de ninguém, me chamo Antonia Pellegrino". Mas isso, dito há 15 anos, soava agressivo. Quando, acredito que, agressivo, é o apagamento da identidade da mulher por trás da identidade de um homem", diz.

Sobre o episódio da "namorada do Freixo", ela conta:

"Eu sou roteirista e também sou ativista. E eu fiz um post na minha página pessoal sobre uma série política. Este post viralizou. Por isso uma jornalista da "Veja" me ligou. Ela não me ligou porque eu sou namorada do Marcelo. Ela me ligou porque eu tinha alguma coisa a dizer sobre uma série política. E, talvez, na lógica dos cliques, o fato de eu ser namorada do Marcelo torne a minha palavra mais interessante. Até aí, ok. A jornalista deu uma nota honesta na revista impressa, onde fala quem eu sou, o que eu disse sobre a série e, também, que eu sou namorada do Marcelo. Até aí, ok. Mas quando esta nota subiu para o on-line, ela foi postada com o título 'namorada de Marcelo Freixo diz que…'Acho que quem fez isso trabalhou no automático. Sabemos que o Marcelo é um homem conhecido, mais conhecido que do eu e, dentro da lógica dos cliques, me associar a ele funciona. Mas isso não pode ser feito apagando quem eu sou", conta.

O que fazer em um caso desses, quando te apresentam como "essa aqui é a Maria, namorada do Daniel"? Antonia acha que ficar quieta ou se fazer de louca não é a solução. "Acho que vale falar, como eu falava: "eu não sou a mulher de fulano, eu sou eu". Postar, como eu postei: tenho nome e profissão e não serei apagada por namorar com alguém conhecido. Ou seja, se posicionar quando isso acontece, e não silenciar com um sorriso amarelo.

A atriz Paula Clara Braun aprendeu a fazer o mesmo. Paula é atriz, roteirista, no momento dirige um documentário, atuou em dezenas de peças, novelas e filmes, é mãe de dois filhos e, além de tudo isso, também é casada com o ator Mateus Solano.

Paula já passou por muitas histórias absurdas por conta do marido famoso. "Quando Mateus ficou famoso, eu sabia mais ou menos o que 'ser a mulher do famoso' poderia trazer, mas não imaginava que fosse tanto. Uma vez estreei um espetáculo como atriz. No final do espetáculo tiraram uma foto nossa (minha e de Mateus) e a matéria dizia: "Mateus Solano leva a mulher ao teatro". No caso, eu era a atriz do espetáculo e ele foi me prestigiar! E isso aconteceu mais de uma vez!" Seria engraçado se não fosse triste.

Ela acha que esse tipo de coisa acontece por causa de um "código social de séculos." É comum as pessoas abordarem a nós dois e perguntarem a ele "quais são os seus projetos? "e a mim "como vão as crianças?". Não acho que seja por mal, mas é o esteriótipo de mulher que fica em casa exercendo função de mãe e dona de casa enquanto o marido sai a caça, o que também não quer dizer que uma mulher ficar em casa cuidando dos filhos seja errado. Mas, no caso, eu trabalho!"

Hoje, Paula diz que isso não acontece mais com tanta frequência. Mas, assim como Antonia, não deixa passar em branco. "Hoje isso é raro de acontecer, mas, se acontecer, vou ligar para o/a jornalista e reclamar", sim.

Você não precisa ter um relacionamento com alguém famoso para passar por isso. Inclusive, se você é uma mulher que se relaciona com um homem, já deve ter passado. O que fazer? Você que sabe. Mas ficam as dicas de Antonia e Paula: falar algo do tipo, "oi, eu sou a fulana." Quem sabe um dia não aprendem de uma vez?

Sobre a autora

Nina Lemos é jornalista e escritora, tem 46 anos e mora em Berlim. É feminista das antigas e uma das criadoras do 02 Neurônio, que lançou cinco livros e teve um site no UOL no começo de 2000. Foi colunista da Folha de S. Paulo, repórter especial da revista Tpm e blogueira do Estadão e do Yahoo. Escreveu também o romance “A Ditadura da Moda”.

Sobre o blog

Um espaço para falar sobre a vida das mulheres com mais de 40 anos, comportamento, relacionamentos, moda. E também para quebrar preconceitos, criticar e rir desse mundo louco.