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Nina Lemos

Cafajeste ou abusador? Todo cuidado é pouco na hora de classificar um cara

Nina Lemos

23/04/2018 04h00

Foto: Getty Images

Há alguns meses, um redator famoso no Twitter decidiu largar a rede, onde colecionava milhares de seguidores. Motivo: várias meninas, cansadas de serem paqueradas por ele e tratadas de uma maneira que não achavam legal e sentiam como abuso, resolveram expor o cara. Contaram tudo, e deram nome aos bois. Segundo elas, ele dava em cima de várias, saía com elas e desaparecia.

Carolina Vaccari fez algo ainda mais radical. Há dois anos, ela criou o blog "papo da cena", onde denuncia casos de abuso que acontecem na cena de rock. A tática é a mesma: dar nome aos canalhas.

Algumas denúncias são realmente sérias, de agressão, violência contra a mulher. Outros, de abuso moral, caras ciumentos, machistas etc. Ela publica relato de ex-namoradas de famosos como Criolo.

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"Criei o blog para divulgar a cena de Porto Alegre, mas, como ele cresceu, decidi falar dos caras e dar os nomes, porque sabia que se não falasse eles iam continuar fazendo isso e não se importando", conta.

Mas expor as pessoas? Confesso que, para alguém da minha geração (mais de 40), isso soa radical. E qual a linha que separa um abusador de um cafajeste? O que antes era chamado de dar um perdido, no feminismo atual é denominado de "ghosting", que vem de fantasma e significa desaparecer. Mas desaparecer é abuso?

A Universa conversou com mulheres de gerações diferentes para tentar entender esses tema espinhosos.

"Não podemos esquecer o recorte de geração ao falar desse assunto", diz a filósofa Marcia Tiburi, 46 anos.

"Existe o fato o real e seríssimo da violência contra a mulher, que é um dado. Abusador é um sujeito com um perfil específico, um transtorno. Mas outros são o que na nossa época era chamado de Don Juan. Será que as meninas mais novas não estão psicopatologizando a vida cotidiana demais?", pergunta a filósofa.

Ela lembra que essa geração é a mesma que tomar muitos remédios, como antidepressivos e ritalina. "Será que não estão transformando muita coisa em patologia?", questiona.

Para Carolina, abuso emocional é quando a pessoa "tenta colocar para baixo, também é possessivo, controlador. Eles começam a te fazer se sentir mal, para controlarem a situação."

Perfil parecido com o descrito por Márcia: "o abusador é aquele que, por exemplo, faz você achar que está ficando louca, quando, na verdade, ele que está te deixando louca."

Agora, galinhagem, desaparecer… Isso é abuso?

"Qualquer tipo de interação emocional que nos cause desconforto deve ser vista com cuidado. Inclusive para que a gente decida se quer continuar com essa relação ou não. Mas acho que, por exemplo, dar em cima de vários pessoas ao mesmo tempo é algo que sempre existiu e sempre vai existir no campo dos relacionamentos, e isso não vale só para homens, mas para mulheres também. E não, não vejo isso como abuso emocional. Abuso emocional para mim é uma situação da qual temos muita dificuldade em nos libertar", diz a escritora Marcella Franco, 37, colunista da Folha de S.Paulo.

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"Ghosting" é um dos termos do momento. E serve para definir aquelas situações em que as pessoas dão um perdido. Saem com você e depois desaparecem. Seduzem e somem.

Seria isso abuso? Segundo Carolina, em alguns casos. "Acho que se você se compromete com a pessoa e some é abuso sim. Se faz juras, dá esperança." Marcella discorda totalmente: "Dar um perdido é uma coisa que todo mundo já fez na vida. Vai dizer que em todas as vezes que você se relacionou em sua vida amorosa você se despediu com carinho e gentileza?"

Marcia Tiburi concorda. "Acho que a pessoa não querer mais e sair fora é normal. Que romantismo estamos querendo? Ainda acreditamos naquela ideia antiga e careta de que os caras têm que ligar no dia seguinte?"

A filosófa lembra de algo importante: "Temos que pensar também que temos responsabilidades sobre os nossos desejos e nos perguntar: por que estamos procurando sempre um cara que some? Por que estamos sempre procurando um cara galinha?

A psicanalista Maura Carvalho vai na mesma linha. Para ela, todas as épocas têm o os seus heróis românticos, aqueles tipos privilegiado na cultura que têm um traço que faz com que a gente pense que ele é o máximo. "Esse traço sempre é abusivo, já que coloca a mulher numa posição masoquista. Na nossa época esse cara era o galinha pegador, em tempos de relacionamento aberto e Tinder, o pegador é só mais um desses tipos, normal", diz ela.

Segundo a psicanalista, hoje, para fazer sucesso, o cara é pegador e meio entidade-ghost-sobrenatural. Ela explica: "Sumir é coisa de fantasma. Por que inventamos esses semi-deuses, dotados de capacidades sobrenaturais? Não existe sumir. Se o cara não quer mais, ele vai lá e fala que não quer. Assim como você pode falar que não quer. O problema é que muitos caras acham que não precisam dizer nada. Entre os muitos privilégios de homem branco, está o de que não é preciso explicar, de que está subentendido etc. Na maioria das vezes, não está."

Eu sobrevivi a um idiota

Ser rejeitada é ruim? Sem dúvida. Criar expectativas e elas serem frustradas dói? Muito. Mas, no fim, sobrevivemos. "Sumir pode ser uma coisa boa, porque tem certos caras que seria pior se ficassem", diz a estudante Carol.

"Acho sacanagem se, em algum momento, a pessoa que deu em cima de alguma maneira, sugeriu que poderia haver algum tipo de envolvimento emocional além do flerte, da paquera, do sexo casual. Compreendo que dói quando a gente começa a gostar de alguém e esse alguém some — mas também entendo que, muitas vezes, criamos expectativas sozinhos, esperando que o outro aja de uma maneira específica, e, por isso, nos frustramos quando as coisas saem diferentes", diz Marcella.

E, sim, na hora em que estamos no fundo do poço, sofrendo, não parece tão facil. Nem é. Mas um dia passa.

E se, no caso, você se envolveu com um cara realmente "transtornado" e abusador, peça ajuda. Converse com as amigas, com a família, um terapeuta. Abuso é coisa muito séria.

Sobre a autora

Nina Lemos é jornalista e escritora, tem 46 anos e mora em Berlim. É feminista das antigas e uma das criadoras do 02 Neurônio, que lançou cinco livros e teve um site no UOL no começo de 2000. Foi colunista da Folha de S. Paulo, repórter especial da revista Tpm e blogueira do Estadão e do Yahoo. Escreveu também o romance “A Ditadura da Moda”.

Sobre o blog

Um espaço para falar sobre a vida das mulheres com mais de 40 anos, comportamento, relacionamentos, moda. E também para quebrar preconceitos, criticar e rir desse mundo louco.