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Nina Lemos

“Unbreakable Kimmy” fala de gente como a gente: perdedores desajustados

Nina Lemos

01/06/2018 04h00

Jovens bonitos de 20 e poucos anos procurando um lugar ao sol em Nova York? Solteiras com "problemas de gente rica"? Nada disso. Os anti-heróis perfeitos para os tempos de hoje são mais reais e estão na série "Unbreakable Kimmy Schmidt", que tem roteiro de Tina Fey e estreou sua quarta (e praticamente última, sniff) temporada na Netflix essa semana.

Se você nunca viu, saiba: essa é uma das séries mais engraçadas do momento. E ela fala de gente como a gente: perdedores, imperfeitos, desajustados. Talvez por isso mesmo, Kimmy seja cultuada, com seguidores fiéis, mas não é um fenômeno de sucesso como foi um "Sex and the City" da vida. O glamour ali é pé no chão. Os personagens não frequentam lojas de grife, mas, sim, lojas de 1,99 no dia seguinte ao "Dia dos Namorados", porque está tudo em promoção e "parece Natal." Muito mais divertido, na real.

Para quem nunca viu ou para quem quer lembrar: o trio principal é formado por Kimmy Schmidt, uma moça que passou 15 anos em um abrigo depois de ser sequestrada (e abusada) por um guru maluco e chegou a Nova York com a inocência de uma criança gigante. Seu companheiro de quarto é Titus Andromedon, um ator e cantor gay, negro e gordo que tenta fazer sucesso e vive em um mundo paralelo maravilhoso de glamour — ele mesmo se define como "diva negra gay".

Titus é o amigo maluco que todos queremos ter. A outra estrela é Lilian, vizinha e senhoria da dupla, uma senhora de mais de 60 anos, hippie punk, que já passou por todas nessa vida e se desespera ao ver seu bairro ser invadido por hipsters. Para completar, eles têm a amiga Jackeline White, uma ex-milionária e esposa-troféu (antiga patroa de Kim).

Esqueça o predinho antigo: os três personagens principais moram em um prédio caindo aos pedaços, mesmo, com ratos. Tudo ali é desajustado. Ninguém é perfeito. Esquisitos fazem falta no mundo de hoje com toda essa perfeição fake.

Além disso, a série mostra que é possível rir de tudo, até de abuso sexual e preconceitos, sem ser ofensivo. Pelo contrário, o humor ali critica os preconceitos. Quem reclama que o politicamente correto destruiu o humor precisa de uma aulinha de "Kimmy" para ver que isso não é verdade.

Homens oprimidos

A série já abordou temas como gentrificação (um dos melhores momentos, com Lilian se algemando a um guindaste para tentar impedir a construção de um prédio na temporada 3), envelhecimento, racismo (tirada da temporada nova, Titus, falando sobre si: "trabalhei como um escravo. No que ele mesmo completa: "racismo."). Agora, chegou a hora de falar de feminismo, abuso sexual, #MeToo e era Trump.

Há espaço até para um "episódio documentário", sobre homens que criam um movimento contra as mulheres "que estão tentando dominar o mundo", que sentem nostalgia de quando as mulheres "obedeciam", e como homens como Harvey Nichols são grandes injustiçados. Qualquer semelhança com os chamados "masculinistas" e com aqueles que pensam em criar o dia do orgulho hétero não é mera coincidência.

Outro assunto discutido com brilhantismo: o privilégio branco. Em um dos melhores episódios, Kimmy convida Titus para viver um dia de "Sex and The City" com ela. Eles tomam brunch, experimentam cosmopolitan (e se sentem super cosmopolitas) e vão fazer compras no bazar do exército da salvação (um luxo, para quem costuma pegar modelos no lixo) e entram em um brechó chique. Titus faz um teste, pede para que a amiga vista um casaco luxuoso. Na hora aparece um vendedor sorridente e diz: "é a sua cara, dê uma volta na rua para experimentar!". O mesmo vendedor olha para Titus e diz: "o banheiro é só para clientes, vá embora, por favor." No que o amigo conclui: "é isso o que to falando, você tem o privilégio branco".

E dá para rir disso? Um riso nervoso, claro, afinal, estamos rindo dessa "sociedade podre", como diria a punk Lilian.

A quarta temporada de "Unbreakable Kimmy Schmidt", lançada essa semana, tem seis episódios. Os outros capítulos que encerram a série ainda não têm data de lançamento. E a previsão é que as aventuras dos desajustados de 2018 rendam também um filme.

Os perdedores e desajustados do mundo agradecem. Em um mundo de princesas e casamentos reais, vamos admitir, na verdade, somos todos um pouco Kimmy, Lilian e Titus.

Sobre a autora

Nina Lemos é jornalista e escritora, tem 46 anos e mora em Berlim. É feminista das antigas e uma das criadoras do 02 Neurônio, que lançou cinco livros e teve um site no UOL no começo de 2000. Foi colunista da Folha de S. Paulo, repórter especial da revista Tpm e blogueira do Estadão e do Yahoo. Escreveu também o romance “A Ditadura da Moda”.

Sobre o blog

Um espaço para falar sobre a vida das mulheres com mais de 40 anos, comportamento, relacionamentos, moda. E também para quebrar preconceitos, criticar e rir desse mundo louco.