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Nina Lemos

TV nos anos 80 tinha família poliamorosa. Por que encaretamos tanto?

Nina Lemos

12/11/2018 11h19

Semana passada, alguém lembrou no Facebook de um dos clássicos dos anos 80, que é uma prova cabal de que o mundo encaretou: o seriado "Armação Ilimitada". Na série, que passava no horário nobre da Globo, uma garota (minha musa Zelda Scott, interpretada por Andréa Beltrão) tinha dois namorados (Juba e Lula, surfistas) e eles tinham um filho adotado, o Bacana. É verdade. Essa era a moderna família brasileira no seriado genial de Guel Arraes que víamos quando adolescentes.

O que aconteceria se "Armação Ilimitada" fosse exibida hoje? Pânico, boicote. A família brasileira estaria sendo ameaçada. Notícias correriam pelos grupos de WhatsApp avisando que o seriado seria um pacto entre a Globo e os comunistas para destruir a nação brasileira.

Fato. Seria um escândalo. E, repito, estamos falando de um seriado que era exibido para adolescentes há mais de 30 anos.

Na mesma época, na verdade desde 1982, no programa "Viva o Gordo", Jô Soares interpretava o Capitão Gay, um super-herói vestido com legging rosa choque. O "defensor das minorias, sempre contra a tirania" era acompanhado por "Suely", uma drag interpretada por Eliezer Motta.

Capitão Gay era amado pelas crianças. Eu o adorava. Se tivesse um boneco do Capitão Gay eu teria pedido de Natal, certeza. E não teriam me negado ou achado que dormir com um Capitão Gay de pelúcia destruiria a minha vida.

Hoje, há quem pense em boicotar a Netflix por causa de um seriado de animação chamado "Superdrags". E o Pabllo Vittar, vocês sabem, é um perigo… Nos anos 1980, uma das musas da época era Roberta Close, trans, cantada até por Erasmo Carlos em uma música que virou hit no rádio.

Crescemos vendo mulheres peladas nas bancas (não tinha tarja nas revistas expostas). E não, esse não é um texto do estilo "no meu tempo que era bom". Inclusive porque isso não é verdade. Nesse tempo, o racismo e o machismo eram escancarados. Chamar negro de "macaco" na TV acontecia normalmente. Evoluímos muito de lá para cá. Mesmo.

Mas junto veio a patrulha da moral e dos bons costumes, um pessoal que tem medo de drag e aula de educação sexual em escolas em 2018. Como podem ter encaretado tanto?

Eu suspeito que seja uma crise de histeria coletiva causada por overdose de fake news de WhatsApp. É como se todo mundo passasse o dia gritando: "Ai, meu deus, que absurdo, socorro, o que será dos meus filhos?"

O pior é pensar que muito desses "neo-apavorados" cresceram com "Armação Ilimitada".  Eram fãs da Zelda Scott, que tinha dois namorados, amavam Renato Russo e Cazuza. Alguns dos meus colegas de geração parecem não ter entendido nada… Uma tristeza.

Sobre a autora

Nina Lemos é jornalista e escritora, tem 46 anos e mora em Berlim. É feminista das antigas e uma das criadoras do 02 Neurônio, que lançou cinco livros e teve um site no UOL no começo de 2000. Foi colunista da Folha de S. Paulo, repórter especial da revista Tpm e blogueira do Estadão e do Yahoo. Escreveu também o romance “A Ditadura da Moda”.

Sobre o blog

Um espaço para falar sobre a vida das mulheres com mais de 40 anos, comportamento, relacionamentos, moda. E também para quebrar preconceitos, criticar e rir desse mundo louco.