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Nina Lemos

Depois do sanduíche "Maria da Penha", advogado ri com "X Marielle Franco"

Nina Lemos

29/11/2018 19h04

Foto: Marcia Foletto/O Globo

"Queria o X Marielle Franco. "Muitas azeitonas?". "Não me recordo com quantas azeitonas vêm". A "piada" foi feita na página da cidade de Salto, no interior de São Paulo. Sim, dois cidadãos estavam sugerindo que se criassem sanduíches Marielle. E as azeitonas são, sim, uma relação às balas que a vereadora recebeu. Surreal? Absurdo? Sim. Ainda mais quando ficamos sabendo que a piada foi feita por um policial e por um advogado, o vice-presidente da OAB da cidade, Flavio Garcia.

A "piada" (na verdade um ataque à memória de Marielle) foi feita em meio à polêmica que tomou conta da cidade depois que Salto foi parar no noticiário por outra razão absurda. No início da semana, viralizou na internet o fato de uma hamburgueria da cidade, a Kal Hamburgueria, ter colocado no cardápio um sanduíche chamado Maria da Penha. Sim, eles se referiam à lei, inspirada na ativista  Maria da Penha, que protege mulheres contra a violência doméstica. O hambúrguer continha repolho roxo. E, no cardápio ainda fizeram o trocadilho de destacar o "olho roxo", de "repolho roxo", em roxo.

Reprodução/Facebook

O fato, obviamente, gerou revolta, porque não, esse tipo de "piada" não passa mais impune. Centenas de pessoas reclamaram. Sempre é bom lembrar. Mais de 600 casos de de violência doméstica são registrados no Brasil a cada hora. Não existe NADA de engraçado nisso.

Depois de ver as páginas da lanchonete nas redes sociais inundadas de comentários sobre a falta de sensibilidade (para dizer o mínimo) da "brincadeira", o dono da hamburgueria primeiro mudou o nome do sanduíche para "censurado". As críticas continuaram. Hoje, no cardápio, o hambúrguer é chamado simplesmente de "hambúrguer com repolho", e o dono da lanchonete enviou uma carta para a imprensa se desculpando. OK. Já tinha sido absurdo o suficiente e podia ter parado por aí.

Mas parece que não serviu de lição, né? Depois disso, homens vão fazer piada com uma vereadora brutalmente assassinada? O que está acontecendo com as pessoas? O blog entrou em contato diversas vezes por telefone com a OAB de Salto para falar sobre o ocorrido com Flavio Garcia. Segundo a secretária, ele não estava. Mas, no fim da tarde, ele escreveu um pedido de desculpas pelo "ocorrido na internet" por meio de sua conta no Facebook.

"Venho a público retratar e desculpar-me por ter sido autor de um comentário que atingiu desfavoravelmente a diversas pessoas, inclusive, queridas por mim. Reconheço que a retratação se tornou imperiosa, na medida em que, pela minha formação humanística, atribuo à dignidade humana a mais alta importância. Brincadeiras indignas e desrespeitosas à relevante causa de Marielle Franco não devem, de forma alguma, ser aceitas. Sou marido, filho, pai de duas mulheres, advogado, sempre atuante em defesa das minorias, e não consinto com quaisquer espécies de ataques a quem quer que seja, principalmente, às mulheres. Minha postura sempre foi pautada pela polidez e pelo respeito ao próximo. Não poderia, desta feita, omitir-me diante de um erro meu. Mais especificamente acerca do caso Marielle, imperioso destacar que esse ocorrido, que teve uma comoção nacional, foi por mim abordado, diversas vezes, e sob um olhar humano, complacente e justo. Aproveito a oportunidade para parabenizar a todas as mulheres que não se acanham na luta por seus direitos. Todas vocês são admiradas por mim.De igual forma, consciente de que o discurso reflexivo é mais potente do que o de ódio, desejo, verdadeiramente, que cada luta seja sempre marcada pela sensatez. Linchamentos virtuais, ameaças e desmoralizações a mim e a pessoas próximas a mim não podem, também, ser aceitos.

Sempre à disposição para continuar tentando acertar,

Flavio Garcia"

Bem, agradecemos a parte que nos toca sobre as mulheres que não se acanham na hora de lutar pelos seus direitos. E piadas com a Marielle e com a Lei Maria da Penha não podem mesmo ser aceitas, como disse o advogado. Então, por que fazem?  Sim, gente, as coisas mudaram. E quem agir com essa insensibilidade vai, sim, ser cobrado. É a vida…

Sobre a autora

Nina Lemos é jornalista e escritora, tem 46 anos e mora em Berlim. É feminista das antigas e uma das criadoras do 02 Neurônio, que lançou cinco livros e teve um site no UOL no começo de 2000. Foi colunista da Folha de S. Paulo, repórter especial da revista Tpm e blogueira do Estadão e do Yahoo. Escreveu também o romance “A Ditadura da Moda”.

Sobre o blog

Um espaço para falar sobre a vida das mulheres com mais de 40 anos, comportamento, relacionamentos, moda. E também para quebrar preconceitos, criticar e rir desse mundo louco.