Berlim: diretora e estudante brilham com filme sobre escolas ocupadas em SP
Em 2015, a estudante Marcela Jesus tinha 16 anos quando participou, com colegas, da ocupação do colégio onde estudava, a Escola Estadual João Kopfe, no centro de São Paulo. Eles queriam acabar com uma reforma proposta pelo então governador Geraldo Alckimin, que fecharia sua escola. Em pouco tempo, cerca de 200 escolas estavam ocupadas. O número só aumentou.
A experiência (além de barrar a tal reforma) mudou sua vida. Na ocupação, Marcela conheceu o feminismo, passou a ter orgulho de sua negritude (viveu ali o processo de transição capilar).
Veja também
- Daniela Mercury sobre política não está legal, mas já foi muito pior
- Menina usa rosa e menino usa azul: em que ano a ministra Damares está
- Estilista protesta em Berlim contra Bolsonaro: como ignorar intolerância
Ela conta no filme como se sentiu livre ao raspar o cabelo, que antes era alisado, e passou a se definir como feminista. Também desenvolveu síndrome de pânico, depois de participar de manifestações onde viu a polícia agir com extrema violência contra ela e seus colegas.
Corta para 2019.
Marcela e a diretora Eliza Capai, de 39 anos, estão em Berlim apresentando o filme "Espero tua (re)volta", documentário da cineasta que mostra o movimento dos estudantes que balançou as estruturas entre 2015 e 2016.
Sua primeira viagem internacional teve direito a tapete vermelho e aplausos de pé."Minha família está superfeliz por eu estar aqui. Sou a primeira pessoa da familia a sair do Brasil. Isso me deixa muito feliz, porque isso faz parte de um dos objetivos da minha vida, a ascensão social."
O filme foi recebido com entusiasmo no Festival de Berlim. Em uma noite de sábado, foi exibido em um dos principais cinemas do festival para uma plateia lotada de mil pessoas. Alguns sentam no chão. No fim, o documentário foi aplaudido por longos cinco minutos por uma plateia de pé (honraria que poucos filmes recebem).
Ao apresentar sua obra, a diretora fala sobre a atual situação do Brasil. "É minha obrigação nesse momento denunciar o que acontece no Brasil. Eu nem penso a respeito, não penso se isso pode me prejudicar ou não. Isso é o mínimo", diz Eliza, que contou para a plateia que o atual presidente do Brasil, dias antes da eleição "avisou que iria acabar com os ativistas sociais, ou seja, com a gente". Que direitos humanos estão ameaçados, que a população LGBT está em risco e que "Bolsonaro é fã de Carlos Alberto Ustra, um torturador, um monstro".
Eliza contou também sua história pessoal. "Nasci na ditadura, meu pai foi barbaramente torturado por fazer parte do movimento estudantil. Não acharia que a gente viveria com esse medo de novo."
Apesar da tristeza com o momento atual, Eliza, que nasceu no Espirito Santo e mora em Ubatuba, sabe que seu filme já é um sucesso. "Espero Tua (re)volta" é um dos 17 selecionados para o prêmio de melhor documentário do festival e também concorre para a premiação especial da Anistia Internacional.
No fim da exibição, Marcela e Elisa respondem perguntas de alemães preocupados com o Brasil. "Como esse filme será recebido no Brasil de Bolsonaro?" A preocupação maior é com as imagens dos estudantes no centro das manifestações, muitas vezes apanhando de policiais. As cenas são chocantes, doloridas.
Ocupar e resistir
Para refazer os passos daqueles dias, Eliza conta com imagens dos Jornalistas Livres, da Midia Ninja, de ativistas que cobriam os conflitos."Eu estava acompanhando de longe. Até que um dia estava fazendo um trabalho em São Paulo e estava acontecendo a invasão da Alesp (Assembleia Legislativa de São Paulo, que foi ocupada por estudantes em 2016). Fui até lá para ver, de curiosidade, com uma amiga produtora. Não saí mais." Fiquei dormindo lá. Quando a Alesp foi desocupada, Eliza sabia que faria um filme sobre o tema.
Depois, foi atrás de pessoas que pudessem narrar a história. Escolheu duas meninas e um menino: Coca, Nayara e Marcela, que acabou virando a estrela do filme. "Escolhi a Marcela porque ela não está lá apenas como ativista, ela mostra quem ela é. Ela não está no centro das ações, mas está ali o tempo todo mostrando sua subjetividade", conta Eliza.
No fim da exibição, Marcela emociona a plateia e a própria tradutora do festival — a profissional confessa estar com dificuldades para falar porque o que Marcela disse é muito forte. "Eu estou disposta a lutar e morrer pelo meu povo preto."
Racismo e feminismo
Nessa época, São Paulo tremeu não só com as manifestações dos estudantes, mas também com as manifestações feministas. Marcela, feminista, negra, da periferia, parece realmente perfeita para narrar esse momento.
"Eu sempre trabalhei com questão de gênero. Mas foi nas ocupações que eu entendi como as coisas tinham mudado de verdade. Me senti uma tia careta", conta Eliza. "Teve um dia que tinha uma menina linda, de shortinho bem curto, quando ela se debruçava na mesa aparecia até polpa da bunda. E eu pensava: "nossa, ela tá se arriscando." Depois que fui pensar que não tinha nada a ver. Que era meu corpo, minhas regras. Que além de ocupar o espaço público, tem também a questão de ocupar seu próprio corpo, de se aceitar como se é."
Ela continua. "Eu entrava ali e perguntava: é homem ou mulher? Aí me falavam, não importa se é homem ou mulher! As meninas se beijando com a maior calma, tranquilidade. Eu me transformei ali." Essas imagens, segundo a diretora, trazem esperança. "Estamos em um momento péssimo, mas isso também mostra que as coisas mudaram para melhor. Somos o país que mais mata LGBT, mas as pessoas estão se beijando na rua. Tem uma cena em que duas estudantes se beijam com um carinho, uma coragem."
Agora, Eliza que pretende rodar festivais do Brasil e do mundo. "Espero que o filme ajude a mostrar que essas pessoas não são vândalas. Não é que as pessoas não querem estudar. Todos os movimentos sociais que lutam por uma sociedade mais igualitária precisam de estratégia e união. É assim que se transforma a sociedade".
Marcela, por sua fez, ainda mora com a família, em São Miguel Paulista, na zona leste de São Paulo, estuda teatro e não pensa em parar de lutar. "Não sei te dizer o que minha geração pode fazer nesse momento difícil nem sei o que podemos fazer nesse momento difícil do país. Mas acho que o mais importante é não deixar o medo atrapalhar a luta."