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Nina Lemos

O que fazemos pra escapar de assédio de homens em transporte público

Nina Lemos

03/07/2019 04h00

Ilustração: Divasca/UOL

"Vi você de longe. Vi o tamanho da sua bunda. Você parece uma daquelas coroas gostosas que ainda tem bunda dura". Quem me disse isso foi um motorista de táxi no Rio de Janeiro. Cinco minutos depois, ele repetiu que eu tinha uma bunda gostosa e o corpo ótimo. "Você tá com tudo em cima", ele dizia, e me olhava pelo espelho. No mesmo momento, fiz o que nós, mulheres brasileiras, infelizmente já nos acostumamos a fazer: acionei o meu mecanismo de pânico e atenção ao mesmo tempo.

A primeira coisa que fazemos em uma situação dessas, muitas vezes, é mentir.  Por isso, inventei um marido imaginário.

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"Moço, não fala uma coisa dessas. Sou casada, meu marido é médico, tenho dois filhos em São Paulo." Como se um casamento com um médico fosse me livrar de alguma coisa, ou como se ser mãe me fizesse ter menos chance de ser estuprada. Sim, porque na hora em que você está em um táxi, sozinha, você está sob o poder de alguém. "E se ele tiver uma arma? E se ele mudar de caminho?". Tudo isso passa pela sua cabeça nesses cinco minutos.

Deu tudo "certo", ou seja, só sofri assédio verbal naquele dia de sol. Ele me deixou no meu destino (a praia). Tive um ataque de ansiedade e não anotei a placa do carro.

Isso aconteceu comigo e muitas das minhas amigas que já passaram por situações parecidas, por mais absurdo que isso possa ser. E, claro, no transporte coletivo, como ônibus e metrô, isso é rotina

Por mais que faça parte da nossa vida, os homens que lêem esse blog, e talvez nem nossos namorados, familiares e amigos,  devem saber disso. Mas nós, mulheres, temos uma espécie de plano de guerra quando saímos de casa no Brasil. 

 Nesse tipo de situação, como essa que vivi no táxi, outra coisa bastante comum entre as mulheres é: pegar o telefone e fingir que está falando com alguém. De preferência um homem, claro. "Oi, amor, já estou chegando em casa", dizemos para um celular mudo. Para que o assediador saiba que temos um homem, que assim estamos mais protegidas. É absurdo a gente ter que mentir que temos um homem nos esperando em casa para nos sentirmos protegidas. Mas quando estamos dentro de um táxi ou de um Uber e a situação fica estranha, fazemos isso. 

A lista de "cuidados" que tomamos é imensa. E lembrei disso ao ler aqui no Universa uma pesquisa que mostra que 97% das mulheres brasileiras já sofreram assédio em transporte público. A pesquisa inclui ônibus, trem, metrô, e também carros chamados por aplicativos, como Uber e táxi. Sinceramente, me pergunto quem são essas 3%. Talvez nunca tenham saído de casa, talvez tenham motorista particular. Ou muita sorte mesmo. 

Não sentar ao lado de homem e checar o ambiente

Você, leitor homem, não deve saber. Mas na hora de pegar um ônibus intermunicipal, principalmente à noite, por exemplo, todo cuidado é pouco. Pode ser que o cara que senta do seu lado passe a mão em você enquanto você dorme. Por isso, preferimos sentar sozinhas. Vemos se o homem não tem "uma cara estranha". Damos uma checada. De preferência, preferimos sentar perto de uma mulher.

O mesmo vale para ônibus e metrô no dia-a-dia. "Dou uma sacada no ambiente e, se possível, sento perto de mulher, sim", me diz uma amiga, que se sente mais segura nos vagões só para mulheres de trem e metrô (eles existem em algumas capitais, como Rio de Janeiro, Brasília, Belo Horizonte e Recife) Quando não existem, ou estão cheios, nós, mulheres, preferimos "encostar na parede" para evitar risco.

"Como a probabilidade de ser assediada é muito grande, você entra em um estado de vigilância eterno. Então, por exemplo, se a perna do passageiro ao lado encostar em você, acho que seu cérebro já está treinado para identificar como ameaça", ela diz. 

Roupa de ônibus

Verdade. E como temos medo de ser assediadas, nos preocupamos, claro, com  a questão da roupa.

Lembro quando trabalhava em uma revista e a maioria das meninas era muito jovem. Elas tinham a "roupa do ônibus", que, claro, era uma calça jeans. Evitar decotes e saias. "É chato porque às vezes você quer desencanar e sair de casa sem sutiã, mas não pode, porque sabe que um cara vai ficar olhando", diz uma amiga carioca. Na verdade, pode. A culpa não é da roupa que você está usando, mas do cara que a assedia.

Já pensou, ter que tomar todos esses cuidados antes de sair de casa?

Há quatro anos moro em Berlim. E talvez uma das melhores coisas de morar aqui seja poder ser como um homem brasileiro no transporte público, ou seja, andar por aí sem medo de sofrer assédio.

Não preciso pensar se estou ou não de sutiã. Um homem olhar é raro. Sento ao lado de homens. Situações com caras horríveis podem acontecer? Claro. Mas eu diria que o assédio aqui não é uma epidemia. Outro dia mesmo peguei a bicicleta de vestido. No meio do caminho, pensei: minha calcinha pode estar aparecendo. Em cinco minutos, lembrei que aqui isso não seria um grande problema. E não foi mesmo. Assim como não é andar sem sutiã no metrô, no trem ou no ônibus.

Parece uma liberdade boba poder sair de casa sem se armar para a guerra. Mas é uma liberdade imensa. Quem sabe um dia também eu possa andar tranquilamente na cidade onde eu nasci. De ônibus, taxi, trem, a pé, sem me sentir como se fosse para uma expedição onde encontraria animais selvagens. Um dia, quem sabe.

Sobre a autora

Nina Lemos é jornalista e escritora, tem 46 anos e mora em Berlim. É feminista das antigas e uma das criadoras do 02 Neurônio, que lançou cinco livros e teve um site no UOL no começo de 2000. Foi colunista da Folha de S. Paulo, repórter especial da revista Tpm e blogueira do Estadão e do Yahoo. Escreveu também o romance “A Ditadura da Moda”.

Sobre o blog

Um espaço para falar sobre a vida das mulheres com mais de 40 anos, comportamento, relacionamentos, moda. E também para quebrar preconceitos, criticar e rir desse mundo louco.