Topo

Nina Lemos

Patricia Abravanel: mulher pode (e deve) negar fogo sempre que quiser!

Nina Lemos

02/09/2019 19h18

 

Reprodução

"A gente não pode negar fogo para o marido, sabe gente? Porque se a gente nega fogo, ele vai procurar em outro lugar. Na Bíblia fala isso, sabe, que a gente não pode negar fogo."

A frase, que parece ter saído de um curso para noivas nos anos 40, foi dita domingo, na televisão aberta, por uma mulher, para milhares de outras mulheres e homens que assistem TV (e muitos acreditam no que ouvem, claro. Afinal, estão vendo "formadores de opinião"). A autora da pérola é Patricia Abravanel, filha de Silvio Santos.

Não acho que ela tenha sido mal-intencionada. Provavelmente (e isso é uma pena) ela foi sincera. E não pensou no tamanho do desserviço que estava fazendo para milhares de pessoas que assistiam. 

Veja também

Enquanto falava isso, eu e milhares de mulheres pensávamos:  "meu deus, a gente está falando disso faz tanto tempo, para chegar alguém e fazer a gente, do nada, voltar mais de 50 anos na história?"

Ai, Patricia! Que estrago…

Não, querida, é óbvio que você não precisa fazer sexo com seu marido quando não quer. Nem você, nem qualquer mulher. Seu corpo, suas regras, vale para dentro de casa também, onde, inclusive, acontecem os maiores índices de violência doméstica. Sim, o lugar mais perigoso para uma mulher é EM CASA. 

Não estou falando que todos os maridos são estupradores ou agressores. De jeito algum (apesar de muitos serem). Mas em nenhum relacionamento uma mulher tem que fazer sexo sem vontade para "agradar o homem" (e é inacreditável escrever isso em 2019).  Teve uma época, quando Patricia provavelmente era criança, em que listas desse tipo, de "como segurar o homem na cama", vendiam muitas revistas. Elas, com muito trabalho árduo de conscientização, foram demolidas pouco a pouco por uma razão óbvia: as mulheres perceberam que não tinham que agradar o homem. Que não nasceram para isso. E, olha só, muitos homens perceberam também! 

Quando o relacionamento não é perigosamente abusivo, Patrícia deu aval para a submissão. Sim, ela disse para que mulheres abram suas pernas sem vontade porque senão, o homem, "essa fera insaciável que não consegue se controlar", vai buscar a coisa fora de casa. E, sim, se você não transar sempre que o homem quer e ele te trair, a CULPA FOI SUA. E, claro, deu essa carta branca para os homens: forcem a barra, é seu direito, está na Bíblia, Deus mandou! 

Então, pensando no dano menor disso tudo (que já é enorme), a apresentadora incentivou mulheres a serem infelizes. Alguém não se sente um lixo depois de transar sem vontade? E passou a ideia, tão antiga, que, repito, mulheres do mundo todo se empenham para mudar, de que A GENTE TEM QUE FAZER TUDO PARA AGRADAR O HOMEM. Não. A gente deve respeitar e ser respeitada. Ser bacana com o outro, que também é bacana com a gente, independentemente da gente estar com vontade de transar ou não. Se o cara não entender isso, na boa, dane-se.

Estupro marital existe 

Na escala mais séria, aquela que atinge relacionamentos abusivos, a fala de Patricia é quase uma permissão para que homens cometam crimes e que mulheres aceitem ser vítimas de estupro. Sim, é uma das coisas mais difíceis de acreditar e de aceitar, mas existe estupro dentro do casamento.

Esse é um tema complicadíssimo porque a gente tende a achar que o marido não estupra. Mas acontece, sim. E muito. Em 2016, segundo dados do Ministério da Saúde, foram registrados 890 estupros por maridos ou namorados no Brasil. Claro, poucos chegam a serem denunciados, dada a complexidade do assunto.

Patricia está sendo duramente criticada. Seu nome esteve nos Trend Topics do Twitter. As críticas são necessárias e não são de "feministas atrás de lacre".  São até de homens que respeitam suas mulheres e não as "forçam a fazer sexo".

A apresentadora ainda pode aprender que não precisa agradar homem e fazer sexo sem vontade. Todos torcemos para isso. Agora, quanto ao estrago disso dito para milhões de pessoas em um domingo, ele já foi feito.  Ela devia se explicar na TV? Seu pai, o dono da emissora, poderia chamar várias mulheres para debaterem o assunto com seriedade na TV? Acho que sim. Fica a ideia. Algumas frases podem ser perigosas. E lembrando o mantra: não é não. Seja namorado, marido, e seja qual for a religião. 

Sobre a autora

Nina Lemos é jornalista e escritora, tem 46 anos e mora em Berlim. É feminista das antigas e uma das criadoras do 02 Neurônio, que lançou cinco livros e teve um site no UOL no começo de 2000. Foi colunista da Folha de S. Paulo, repórter especial da revista Tpm e blogueira do Estadão e do Yahoo. Escreveu também o romance “A Ditadura da Moda”.

Sobre o blog

Um espaço para falar sobre a vida das mulheres com mais de 40 anos, comportamento, relacionamentos, moda. E também para quebrar preconceitos, criticar e rir desse mundo louco.