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Nina Lemos

Geração cancelamento: pessoas são cartão de crédito para serem canceladas?

Nina Lemos

05/10/2019 04h00

Você pode ser cancelada a qualquer momento (Foto: iStock)

Semana passada, em meio à repercussão de uma entrevista que fiz aqui para Universa com a Luana Piovani e deu muito o que falar    perguntei brincando no Twitter: "será que eu vou ser cancelada?" Era uma pergunta retórica, irônica e uma BRINCADEIRA. Mas uma seguidora me respondeu, falando sério: "eu não sei."

Epa, que medo (risos nervosos).

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Se você não frequenta as redes sociais, principalmente o Twitter, talvez nem saiba do que eu estou falando. Como eu poderia ser cancelada? Afinal, eu não sou cartão de crédito nem TV por assinatura, certo? 

Mas, faz um tempo, as pessoas passaram a usar o termo "Cancela!" Virou modinha, principalmente entre os mais jovens. Se alguém pisou na bola, falou algo que você não gostou ou deu mancada… Alguém grita: cancela! E outra dá o veredito: fulano de tal… cancelado! Sim, como se você apertasse a tecla "delete" do seu computador e a pessoa fosse desaparecer.

Nos últimos tempos, já vi muita gente ser "cancelada" (mais de uma por dia). Algumas dessas pessoas foram "canceladas" porque deram declarações homofóbicas, outras porque foram racistas. Bem, trago más notícias, mas, infelizmente, não tem como cancelar racistas, machistas ou homofóbicos. Infelizmente, essas pessoas continuam existindo, quer a gente queira ou não. A gente vai ter que lidar com elas. Mesmo que seja para combater.

Mas outras foram canceladas apenas por detalhes ou alguma treta na Internet. Valesca Popozuda, por exemplo, foi cancelada porque postou uma foto na internet ao lado de um maquiador que tem posturas homofóbicas. Anitta sempre é cancelada. E, na manhã de sexta (04), no Twitter, o cancelado era Justin Bibier. 

Segundo os defensores da "cultura do cancelamento", essa ideia nasceu como forma de boicote a artistas abusadores, racistas, homofóbicos. Eu não tenho nada contra o boicote. E como qualquer humana, também me decepciono como meus ídolos. Mas cancelar eu já desconfio, simplesmente porque, repito, isso é impossível.

Um exemplo: eu passei a vida toda sendo fã do Morrissey. Mas muito fã. Já fui até a Argentina ver um show dele (eu juro!). Pois bem, de um tempo para cá, o Morrissey passou a ser uma pessoa abjeta, que dá declarações falando que denúncias de assédio são histeria de mulheres, contra imigrantes, uma coisa horrível. Hoje, não iria a um show dele nem que me dessem um ingresso. Eu também não compraria nenhum produto da marca "Morrissey". Eu não vou dar dinheiro para alguém que, apesar de incrivelmente talentoso, dá um monte de declaração preconceituosa.

Mas isso quer dizer que eu tenha apagado todas as músicas do Morrissey? Não. Quer dizer que ele não tenha sido importante na minha vida e que toda a poesia que ele escreveu não seja maravilhosa? Não, óbvio. Resumindo: eu não cancelei o Morrissey! Ele faz parte da minha vida. Mesmo se eu quisesse, não conseguiria cancelar.

"Fada sem defeitos"

A internet é maravilhosa, mas ela deixou todos nós um pouco malucos, vamos admitir. A gente pode deixar de seguir alguém no Instagram,  pode bloquear gente no Facebook e no Twitter. Podemos até (maravilha!) cancelar mensagens enviadas pelo WhatsApp antes que a pessoa leia. Mas talvez isso tenha deixado a gente achando que tem superpoderes, como esse de "cancelar pessoas." Desculpa, mas não temos. 

Outra expressão que tem sido muito usada na internet é o "fada sensata sem defeitos." Ela é usada, meio de brincadeira, meio de verdade, para elogiar pessoas. Mas será que não acreditamos nela? E, claro, "a fada sensata" é irmã do cancela. Se você acha que alguém não tem defeitos, gente, desculpa, mas uma hora você vai se decepcionar. E aí, o que você faz? Cancela!

"Ah, mas são só expressões", "Ah, mas são só memes!". Ah, tá, mas quanto tempo de fato a gente passa fora da internet? E o quanto a gente não adota os mesmos comportamentos fora dela? Você começa cancelando gente na Internet, depois passa a cancelar na vida real.

 Já aconteceu comigo. Já fui "cancelada" por uma "amiga" por causa de uma discussão em um grupo de WhatsApp. Bizarríssimo. E, enquanto escrevo esse texto, confesso, tenho medo de ser cancelada porque ousei falar mal do cancelamento. Que tempos, minha gente! Que tempos!

Sobre a autora

Nina Lemos é jornalista e escritora, tem 46 anos e mora em Berlim. É feminista das antigas e uma das criadoras do 02 Neurônio, que lançou cinco livros e teve um site no UOL no começo de 2000. Foi colunista da Folha de S. Paulo, repórter especial da revista Tpm e blogueira do Estadão e do Yahoo. Escreveu também o romance “A Ditadura da Moda”.

Sobre o blog

Um espaço para falar sobre a vida das mulheres com mais de 40 anos, comportamento, relacionamentos, moda. E também para quebrar preconceitos, criticar e rir desse mundo louco.