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Nina Lemos

Mulheres organizam rede para pagar boletos de trabalhadoras informais

Nina Lemos

21/03/2020 04h00

No início da semana, a coach Camila Lima começou a ver todos seus eventos sendo cancelados (e com isso, os pagamentos). Além de tudo, ela é asmática, por isso faz parte do grupo de risco e não queria se expor durante a pandemia de Coronavírus. Foi quando teve contato com o grupo de Facebook "Boleto mais 1" e resolveu contar sua situação.  Ela publicou, sem muita pretensão, um post em que explicava que tinha sido surpreendida pela pandemia e pedia ajuda para pagar sua parcela mínima de cartão de crédito. Em menos de 48 horas, o dinheiro estava na sua conta. 

"A gente se vira. Não esperava que isso fosse acontecer, que os trabalhos fossem ser cancelados, aí começa a baixar um certo desespero. Vi que existia uma abertura ali, comecei a oferecer espaço de acolhimento e contei a minha história, que meus trabalhos tinham sido cancelados, que minha bicicleta tinha sido roubada. Estou impressionada com o espírito de solidariedade das mulheres. De ver sua história e entender. Chegou mais dinheiro do que eu pedi, com o que sobrou, paguei contas de outras mulheres que estavam precisando. E como contei que minha bicicleta tinha sido roubada, deixaram até uma bike na minha porta, você acredita nisso?", diz Camila em entrevista ao Blog.

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Agora, a coach retribui pedindo ajuda para outras mulheres e oferecendo seus serviços gratuitamente para quem precisa de orientação, seja nos negócios ou na vida, durante esses tempos difíceis. 

O grupo "Boleto mais 1" surgiu na segunda-feira, por iniciativa de um grupo de amigas durante uma conversa despretensiosa no Facebook. A história começou quando a atriz e professora Janaína Kremer postou em seu perfil que gostaria de fazer algo para ajudar mulheres que estavam sem trabalho durante a quarentena. Logo em seguida, a amiga Livia Paschoal criou o grupo. Hoje, as duas e mais três mulheres administram a página.

A ideia delas, que funcionou, era: criar uma rede de ajuda financeira e afetiva em tempo de pandemia e isolamento causado pelo Coronavírus. Para isso, elas decidiram que mulheres que passassem por necessidade, com trabalhos cancelados, postassem ali o que precisavam, com número da conta. E quem pudesse, ajudasse. 

Quatro dias depois, o grupo já tinha mais de 10 mil participantes e dezenas de mulheres ajudadas. "É emocionante. Uma coisa que a gente não podia imaginar, mas que só prova que têm realmente muitas mulheres, mães, em situação desesperadora. São pessoas que já estavam no limite, que trabalhavam para pagar a conta de amanhã e que, agora, ficaram completamente sem nada", diz Janaína. "Me sinto privilegiada porque sou contratada como professora em uma instituição pública, então, tenho minha renda garantida. " 

Conta de luz e botijão de gás

O grupo é um retrato de como está a situação de muitas mulheres com trabalhos informais no momento. Na tarde de sexta-feira, a costureira Luana pedia ajuda para comprar alimentos para os dois filhos. Ela explicava que trabalhava fazendo bicos e tinha sido dispensada para ficar em casa sem nenhuma remuneração. Menos de meia hora depois de sua postagem, outras mulheres já respondiam dizendo que tinham enviado dinheiro para sua conta. . Muitos são os casos de sucesso, com contas totalmente  pagas. A faxineira Regisleine, por exemplo, mãe solteira, conseguiu dinheiro para comprar gás. A roteirista Audrey, pagar a conta de luz.

"Pensamos no formato de pagar boleto por ser uma coisa urgente. Gosto muito de falar sobre feminismo, filosofia. Mas têm mulheres precisando de ajuda urgente, mais do que nunca", diz Janaína.

Mas, apesar da ideia central ser os boletos, o grupo se expandiu. Hoje existem mulheres oferecendo terapia, aula de dança e ioga para outras mulheres em quarentena, ou mesmo apenas convidando quem não está bem para bater um papo. "Cada um oferece o que pode dar, cada um aceita o que quer. A única coisa que não aceitamos é anúncio"

Por enquanto, só mulheres podem pedir ajuda para pagar boletos ou comprar coisas básicas. "Claro que tem muito homem artista precisando de ajuda. Sou atriz e sei como está difícil para o pessoal do circo, do teatro. Mas as mulheres são, em maioria, as grandes cuidadoras. Se não tem filhos, cuidam dos pais, de parentes."

E, claro, outros grupos como esse podem surgir, inclusive feito por homens, obviamente.  Fica a ideia.

Sobre a autora

Nina Lemos é jornalista e escritora, tem 46 anos e mora em Berlim. É feminista das antigas e uma das criadoras do 02 Neurônio, que lançou cinco livros e teve um site no UOL no começo de 2000. Foi colunista da Folha de S. Paulo, repórter especial da revista Tpm e blogueira do Estadão e do Yahoo. Escreveu também o romance “A Ditadura da Moda”.

Sobre o blog

Um espaço para falar sobre a vida das mulheres com mais de 40 anos, comportamento, relacionamentos, moda. E também para quebrar preconceitos, criticar e rir desse mundo louco.