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Nina Lemos

De Madonna a Pugliesi: até quando famosos vão romantizar a pandemia?

Nina Lemos

25/03/2020 04h00

Não está sendo fácil para ninguém lidar com a pandemia do coronavírus. Estamos todos com medo, assustados e cada um reage de um jeito. Ok. Mas uma categoria de famosos (e por isso com enorme poder de influência) parece não ter entendido direito o tamanho da tragédia que estamos vivendo. Ou entenderam, mas estão usando o escapismo e vendo  "beleza" na pandemia do vírus que até o momento em que escrevo já beira os 400 mil casos e registra mais de 16 mil mortos, segundo a World Health Organization.

Os números crescem todos os dias e sistemas de saúde como o da Itália entraram em colapso. Por lá, médicos têm que decidir quem morre e quem sobrevive.

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Ou seja, a pandemia não é fofa. Mas algumas celebridades (falo dos famosos porque eles influenciam outras pessoas, têm responsabilidade, o que não quer dizer que anônimos não façam o mesmo)  continuam insistindo no discurso que eu chamo de "Unicórnio da Pandemia": aquele papo de que esse é um grande momento, que as famílias estão unidas, que o mundo pode mudar, que esse é um momento bonito, único etc. Bom ser otimista. Mas…. pessoas estão morrendo, gente!.

No último domingo foi a vez de Madonna, de quem sou fã, ter seu momento de "iluminação" e me decepcionar. A cantora postou um vídeo em uma banheira com leite, flores, um clima romântico, cercada de luxo, onde fala o seguinte:

"Tem uma coisa sobre o COVID-19. Ele não liga se você é rico ou pobre, quanto famoso você é, quanto divertido você é. Quanto esperto você é, onde você vive, a idade que você tem, as histórias maravilhosa que você tem para contar. Ele é um grande "equalizador"e o que é horrível sobre isso é também grandioso." Ela acrescentou que "estávamos juntos no mesmo barco".

Não estamos, Madonna! Você é uma das artistas mais ricas do mundo. Se ficar doente (ou alguém da sua família), vai ter tratamento diferente, ao contrário da maioria das pessoas do seu país.

Em seu momento de iluminação na banheira, banhada em flores, Madonna esqueceu de algumas coisas. Como, por exemplo, o sistema de saúde dos Estados Unidos! Na terra da rainha do pop, milhares de pessoas não têm seguro de saúde. E lá não existe atendimento público. Por isso, as pessoas têm medo de ir ao médico por não ter grana pra pagar um tratamento, mesmo doentes. 

Que igualdade é essa, Madonna? E o que dizer sobre pessoas que não podem fazer quarentena (porque a empresa não deixou), ou que perdem seus trabalhos no meio da crise? O que tem de "great" nessa situação? 

"Obrigada, Coronavírus"

A modelo holandesa Doutzen Kroes,  influenciadora com 6,4 milhões de seguidores no Instagram, surtou mais pesado. Em um vídeo publicado no seu perfil na rede social, ela disse com todas todas as letras: "Obrigada, Coronavirus, por nos fazer mais humanos e dar um respiro para a Terra." 

Depois de ser duramente criticada, ela apagou o post, disse que queria dar uma mensagem positiva e pediu desculpas. Ok, podemos aceitar as desculpas. Mas como pode? Imagina como vai se sentir um seguidor da modelo (e a Holanda sofre pesadamente com a epidemia: mais de 4 mil casos e 213 mortes até agora) que perdeu parente, ou que ficou desempregado, ver alguém AGRADECER ao vírus?

No Brasil, a influencer que mais tem romantizado a quarentena é Gabriela Pugliesi, que está em isolamento depois de ter tido teste positivo para o vírus.  Sim, eu imagino que não deve estar sendo fácil para ela. Respeito e desejo que fique boa logo. Mas, desde o início, ela minimizou os sintomas, disse que "não era nada demais" e por aí vai. De novo, eu entendo que ela fale isso para si mesma e para os amigos. Mas ela é uma influenciadora importante. Pode passar, mesmo sem querer, a mensagem de que "é só uma gripezinha".

Semana passada, Pugliesi teve seu momento Madonna (só que mais radical) e, em um momento de reflexão disse, entre outras coisas, pérolas como: "A epidemia  está sendo algo invisível que chegou e colocou tudo no lugar. De repente os combustíveis baixaram, a poluição baixou, as pessoas passaram a ter tempo, tanto tempo, que nem sabem o que fazer com ele. Os pais estão com os filhos, em família. O trabalho deixou de ser prioritário, as viagens e o lazer também." Bem, a gente sabe que muita gente está sem trabalho. E que muitos outros não podem nem pensar em fazer quarentena porque senão são demitidos do trabalho, infelizmente. 

E ela completou: "Num instante damos conta que estamos todos no mesmo barco, ricos e pobres, que as prateleiras dos supermercados estão vazias e os hospitais cheios e que o dinheiro e os seguros de saúde, que o dinheiro pagava, não têm nenhuma importância, porque os hospitais privados foram os primeiros a fechar."

Curioso, mas ela falou a mesma coisa que a Madonna. Não, não estamos todas no mesmo barco. Gabriela foi tratada no Albert Einstein, um dos melhores hospitais do Brasil, a que poucos têm acesso. Ela tem uma quarentena em uma linda casa, com "recebidos" que vão de mimos a comida saudável. 

Ela foi mais longe e disse:" Bastaram meia dúzia de dias para que o universo estabelecesse a igualdade social, que se dizia ser impossível novamente." Igualdade social? Sério? Quem leva o delivery na casa dela tem direito a quarentena? Não custa perguntar.

Gabriela, assim como Madonna, apagou o post depois das críticas. Tomara que ela, assim como outros influencers adeptos da quarentena "good vibes" aproveitem esse "momento mágico" (contém ironia, porque, realmente, a quarentena não tem nada de bonito)  para repensar essas coisas que falaram e até seus privilégios.

Sobre a autora

Nina Lemos é jornalista e escritora, tem 46 anos e mora em Berlim. É feminista das antigas e uma das criadoras do 02 Neurônio, que lançou cinco livros e teve um site no UOL no começo de 2000. Foi colunista da Folha de S. Paulo, repórter especial da revista Tpm e blogueira do Estadão e do Yahoo. Escreveu também o romance “A Ditadura da Moda”.

Sobre o blog

Um espaço para falar sobre a vida das mulheres com mais de 40 anos, comportamento, relacionamentos, moda. E também para quebrar preconceitos, criticar e rir desse mundo louco.