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Nina Lemos

Intensivista da rede privada de SP: "sou contra flexibilizar a quarentena"

Nina Lemos

08/06/2020 14h25

 

Arquivo pessoal

Com dez anos de carreira como intensivista, a médica Mariana Perroni já passou por muitas situações extremas, entre elas, cuidar de pacientes em um hospital de campanha no Haiti após o terremoto de 2010 e a pandemia de H1N1. Mesmo assim, ela conta que a experiência atual, como intensivista de dois hospitais privados de alto nível em São Paulo durante o surto de Coronavírus, tem sido a mais intensa delas. 

"Temos um vírus extremamente contagioso que pode, inclusive, ser transmitido por pessoas assintomáticas e para o qual não existe vacina nem tratamento medicamentoso. Nenhum sistema de saúde é preparado para lidar com a demanda que esse combo traz. Em nenhum país." O vírus, segundo ela, está mostrando algo que ela não imaginava: que o sistema de saúde em todo mundo é frágil e praticamente incapaz de lidar com uma situação como essa. 

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No momento, por conta da quantidade de colegas infectados, Mariana trabalha mais horas extras do que nunca. Na época do primeiro contato feito com ela pelo blog, há um mês e meio, Mariana ainda tinha algum tempo. No segundo, no fim de maio, avisou: "as coisas mudaram desde que você me pediu a entrevista, a pandemia está dando um show de imprevisibilidade. To mega sobrecarregada."

Leia abaixo trechos da entrevista concedida por Mariana durante um raro momento de folga no hospital.

O que a Covid-19 mudou na sua vida?
Mariana: Na minha rotina, a principal mudança foi no número de horas. Com o aumento no número de casos, os hospitais estão precisando disponibilizar novas UTIs para suprir a demanda.  Só que a equipe de intensivistas continua a mesma. E precisa se virar para dar conta de mais dias e horários. Em vários hospitais, já existem três escalas de plantão: a usual, a de contingência e a de contingência da contingência (esta última para substituir colegas que se infectam e são afastados ou que fazem parte do grupo de risco para desenvolver formas graves da doença). 

Você tem medo?
Mariana: O momento gera muita ansiedade e apreensão. Vejo vários colegas médicos sem doenças prévias se tornando pacientes. Três colegas jovens (menos de 50 anos) que trabalharam lado a lado comigo se infectaram e precisaram ser afastados. Um deles, teve mais de 50% de comprometimento do pulmão e precisou ser internado no mesmo hospital onde trabalhamos. Essa inversão de papéis mexe com a gente.

Não tem sido raro chegar ao plantão e perguntar sobre algum membro da equipe: "Onde está fulano(a)? Faz tempo que não vejo." E ouvir como resposta "ah, precisou ser afastado(a) porque se infectou."

E eu tenho medo sim. A tensão é real para mim e para todas as equipes de profissionais de Saúde envolvidos no cuidado desses pacientes. Mas tomamos todas as precauções possíveis e fazemos a nossa parte. Porque as únicas coisas maiores que a tensão e o medo são o senso de responsabilidade, a empatia e a vontade de ajudar quem precisa em um momento tão crítico para a saúde mundial.

Você trabalha no momento em hospitais privados. Como está a situação nesses locais?

Mariana. Nos hospitais, as UTIs estão lotadas ou com pelo menos, mais de 90% dos leitos ocupados . E tem sido usual chegar para trabalhar e se deparar com todos os pacientes entubados. O que, ao contrário da percepção popular, não é usual. Eu não lembro de ter vivido isso nem durante a pandemia de H1N1, em 2009. Os EPIs (Equipamentos de Proteção Individual)  ainda não faltaram. Mas o uso já tem sido racionado. 

Pela sua especialidade, você já lita muito com a morte. Mas como é lidar com isso nesse tempo de pandemia, com os pacientes longe da família?

Mariana. Por mais que dar notícias seja, infelizmente, comum em ambiente de UTI, não tem como se acostumar com isso. É doloroso ser a pessoa que marca alguns dos momento mais difíceis da vida de pacientes e familiares.  E isso foi potencializado na pandemia.  Devido às precauções de isolamento, familiares não são permitidos na UTI e tem sido bem difícil ter que dar notícias ruins por telefone, sem a possibilidade do olho no olho e de realmente confortar quem está ouvindo. 

Também é muito triste perceber que as pessoas com os casos mais graves estão distantes das pessoas que mais importam para elas. Posso tentar fazer meu melhor para ajudar a confortá-las, mas não é a mesma coisa. Os óbitos, nessas condições, dilaceram qualquer coração.

Como é para você, profissional da linha de frente, lidar com as falas do presidente de que "é só uma gripezinha", por exemplo, e com o fato dele próprio e outros governantes desrespeitarem o isolamento?

Mariana. E eu me incomodo e me preocupo demais quando opiniões se sobrepõem à Ciência e acabam fomentando posturas e declarações questionáveis. Porque o saldo disso são vidas. Sem dados, somos apenas pessoas com opiniões. E, se as pessoas continuarem se deixando levar por opiniões ao invés de dados, continuaremos vendo o isolamento se afrouxar mais e o número de casos aumentar de maneira exponencial.  Se isso acontecer, dá pra ter uma certeza: não vai ter ventilador, profissionais de Saúde ou UTIs suficientes para dar conta. Nem dos casos de coronavirus e , muito menos, dos infartos, apendicites, AVCs e acidentes de trânsito que continuam acontecendo. Afinal, não é porque vivemos uma pandemia que as outras doenças deixam de ocorrer.

O que achou da decisão de flexibilizar a quarentena em São Paulo nesse momento? 

Mariana. Sou contrária. O isolamento social é a única medida com eficácia cientificamente comprovada nesse momento em que ainda não temos uma vacina ou remédio capaz de curar a doença.

Parece que ninguém se lembra que o Brasil tem a peculiaridade de ser o primeiro país a se tornar epicentro da pandemia em meio a um contexto de desigualdade social extrema. Afinal, o SUS tem apenas um terço dos leitos de hospital do país mas é responsável pela Saúde de dois terços da nossa população. Não precisa ser gênio para imaginar o potencial catastrófico de flexibilizar o isolamento nesse cenário.

Não há a menor possibilidade de discutir reabertura sem a ampliação de leitos hospitalares (principalmente de UTI) e sem a realização de testes em massa que permitam fazer a identificação e o isolamento precoces de pessoas infectadas. 

Eu, assim como todos os paulistanos, também estou cansada da quarentena. Até porque eu faço parte dos 50% que estão seguindo as recomendações (só saio de casa para ir ao hospital). Mas pular etapas e flexibilizar o isolamento nesse momento em que o número de casos só aumenta é a receita para terminar de ocupar instantaneamente o restante dos poucos leitos de UTI que estão disponíveis. 

Como você tem lidado com os pacientes idosos? O que acha desse descaso de "ah, só vão morrer velhos"? 

Mariana. Além da absoluta falta de empatia e da crueldade extrema que essas declarações escancaram, elas são completamente equivocadas: porque deixam lado o fato de que 45% dos brasileiros têm, pelo menos, uma doença crônica e, consequentemente, estão susceptíveis a desenvolver a forma grave da doença caso sejam infectados.

Eu faço minha parte. Faço uso da tecnologia para manter o contato da minha avó de 86 anos, nesses momento em que não posso estar fisicamente próxima dela. Não a verei enquanto eu tiver contato com pacientes com diagnóstico de coronavírus, pois eu não suportaria a ideia de ser a responsável por colocá-la em risco.

Sobre a autora

Nina Lemos é jornalista e escritora, tem 46 anos e mora em Berlim. É feminista das antigas e uma das criadoras do 02 Neurônio, que lançou cinco livros e teve um site no UOL no começo de 2000. Foi colunista da Folha de S. Paulo, repórter especial da revista Tpm e blogueira do Estadão e do Yahoo. Escreveu também o romance “A Ditadura da Moda”.

Sobre o blog

Um espaço para falar sobre a vida das mulheres com mais de 40 anos, comportamento, relacionamentos, moda. E também para quebrar preconceitos, criticar e rir desse mundo louco.