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Nina Lemos

Três meses após a morte de Miguel, patroa acusada segue impune. Surpresa?

Nina Lemos

04/09/2020 04h00

"Por conta de um luxo, para não borrar as unhas, ela tirou meu filho. Ela tirou tudo de mim. Ele tirou o meu neguinho." As frases foram ditas aos prantos e em tom de apelo por Mirtes de Souza na quarta-feira (2/3) em uma live organizada pelo grupo Articulação Negra de Pernambuco. O vídeo com a mãe de Miguel, o menino de cinco anos que foi colocado sozinho no elevador e caiu do nono andar em Recife, marca os três meses depois do crime. "Ela", no caso, é Sarí Cortes Real, ex-patroa de Mirtes, que foi denunciada por crime de abandono de incapaz com resultado em morte e responde ao processo em liberdade. 

Nesses três meses, uma frase dita por Mirtes na época do crime continua fazendo muito sentido. "Se fosse o contrário, já estaria na penitenciária. Nem fiança eu teria."

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Em um vídeo divulgado na época do crime, é possível ver que o garoto entra no elevador sob as vistas de Sarí e que ela mesma aperta o botão do nono andar, de onde o menino caiu minutos depois. Sarí tomava conta do menino enquanto fazia as unhas e Mirtes passeava com o cachorro da patroa.

Sarí pertence a uma família rica e poderosa de Pernambuco (ela é mulher do prefeito da cidade de Tamandaré) e, depois de pagar uma fiança de 20 mil reais, foi solta. Em seu primeiro depoimento, foi tratada com regalias. A delegacia foi aberta 5h da manhã para que ela chegasse sem tumulto. Seus advogados deveriam apresentar sua defesa dia 27 de agosto, mas pediram um prazo maior e ganharam tempo. Na terça-feira, ficou decidido que eles teriam mais dez dias. 

Mirtes e sua mãe, que trabalham há mais de 20 anos para a família, junto com o pai da criança, pedem uma indenização total de R$ 987 mil. 

Como se não bastasse toda a tragédia que ela vive, Mirtes ainda teve que aguentar ódio online quando o valor da indenização foi divulgado. Como se ela quisesse lucrar com a morte do filho.

Vamos lá, fazer um exercício de imaginação de novo: e se quem tivesse morrido fosse o filho de uma família rica depois de cair, por exemplo, em uma escola de elite e fosse provado que a responsável no momento não cuidou da criança. Alguém diria que a família estava "explorando" ou tentando enriquecer se pedisse uma multa nesse valor? Não, certo? 

Na live de quarta -feira, entre soluços, Mirtes agradeceu a aqueles que lutam com ela por justiça. Segundo a mãe de Miguel "isso não resolve, mas alivia um pouco meu coração. Me ajudem a aliviar meu coração", implorou.

Por enquanto, Mirtes tem tido ajuda, sim, da sociedade civil. Ela é assistida por advogados, conta com apoio do movimento Articulação Negra de Pernambuco, outras organizações e de celebridades.

Essa semana, foi lançada uma campanha para dar luz ao caso, com frases de Mirtes escritas em camisetas (com design de Mana Bernardes) e participação de famosas. Angélica, Giovanna Ewbank, Astrid Fontenelle e Patrícia Pillar vestiram as camisetas para cobrar a justiça pernambucana.

Mesmo assim, não é difícil imaginar que nada aconteça com Sarí. O mais provável, se não existir pressão, é que tudo se resolva com um acordo bom para a acusada e bem longe do que a vítima pleiteia. Pergunto de novo: já pensou se fosse o contrário?

Sobre a autora

Nina Lemos é jornalista e escritora, tem 46 anos e mora em Berlim. É feminista das antigas e uma das criadoras do 02 Neurônio, que lançou cinco livros e teve um site no UOL no começo de 2000. Foi colunista da Folha de S. Paulo, repórter especial da revista Tpm e blogueira do Estadão e do Yahoo. Escreveu também o romance “A Ditadura da Moda”.

Sobre o blog

Um espaço para falar sobre a vida das mulheres com mais de 40 anos, comportamento, relacionamentos, moda. E também para quebrar preconceitos, criticar e rir desse mundo louco.