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Nina Lemos

Caso João de Deus: uma aula triste de como desqualificar vítimas

Nina Lemos

19/12/2018 04h00

João de Deus deixa o IML de Goiânia no fim da noite de domingo (16) após prestar depoimentos na Deic (Delegacia Estadual de Investigação Criminal) sobre denúncias de abuso sexual. Foto: Ernesto Rodrigues/Estadão Conteúdo

Mais de 500. Esse é o número de relatos contra o médium João de Deus registradas até agora. Tudo isso, desde o dia 7 de dezembro, quando o programa "Conversa com Bial" divulgou entrevistas com as primeiras mulheres que denunciaram abuso. Esse número continua crescendo.

As mulheres que fazem denúncias são, além de vítimas, admiráveis. Imagina mexer numa dor dessas? E o medo? E a exposição? Tem que ter muita coragem.

Mas o que a defesa de João de Deus faz agora? Acusa as mulheres. Desqualifica as vítimas. Esse pode ser uma tática (questionável) de advogados. Mas muitos vão na onda. E.. duvidam. Pensam: "aí tem coisa".  Sim, o caso precisa ser investigado com todo cuidado. Mas 500 mulheres falando não é pouca coisa.

Na tarde dessa terça feira, o apresentador da Band Fabio Pannunzio criou polêmica ao dizer: "Olha, eu não tenho dúvida nenhuma de que, entre esses relatos, tem muito trigo e tem também algum joio. Você acha crível mesmo que este homem molestou 500 mulheres aos 76 anos de idade? É preciso mais do que hormônios para se crer numa história dessas. E vamos devagar com o andor porque, no meio disso tudo, pode haver uma campanha contrária a esse tipo de religião. É só pra você pensar um pouquinho quando ouvir esses números muito altos assim."

Bem, números muitos altos mostram o quanto o caso é grave. E algumas das denúncias são de abusos que aconteceram há mais de dez anos. Essas mulheres corajosas estariam o que, sendo manipuladas?

A estratégia de diminuir as vítimas, todo mundo sabe, é um clichê quando se trata de nós, mulheres. E todo mundo sabe também que somos constantemente chamadas de loucas. Não só quando denunciamos abusos, mas em brigas de casal, no trabalho. E, claro, somos "putas." Por que um homem bateu na mulher? "Porque ela é louca, uma piranha". Sim, esse tipo de desculpa nojenta ainda é usada.

"Prostituta". O advogado de João de Deus, Alberto Toron, usou essa palavra para se referir a uma das primeiras mulheres a fazer uma denúncia na TV, a holandesa Zahira Lieneke. E se fosse, doutor? Qual a diferença? Uma prostituta pode sofrer abuso sexual de um guru religioso e tudo bem? Ela está pedindo? Ela não teria moral por isso?

O advogado disse ainda que ela teria um passado "questionável". E a acusou de extorsão.

Claro, uma mulher iria até a TV, choraria, narraria coisas horríveis só para ganhar dinheiro. E, pior, seria seguida por mais centenas de mulheres, que olhariam para isso como uma grande oportunidade de ganhar dinheiro.

"Ah, já sei o que fazer para pagar minhas dívidas, vou ali contar uma história terrível de assédio". Além de não fazer sentido, isso reforça qual clichê? O de que somos loucas e interesseiras.

Problemas psiquiátricos

A história só piora (em todos os sentidos). Uma das filhas de João de Deus, Dalva Teixeira, também acusa o pai (de sofrer vários abusos ainda criança). Segundo a defesa do médium, ela sofre de problemas psiquiátricos. Claro, uma louca, sem moral, está inventando!  Detalhe.  No caso de uma mulher que sofreu abuso, precisar de ajuda psiquiátrica é o mínimo, o normal. O que não quer dizer que ela não tenha "moral" para fazer uma denúncia. Pelo contrário, ela tem ainda mais motivos para cobrar justiça.

Um dos casos que mais me chamou a atenção no meio de tantos horríveis (é impossível ler ou ouvir os testemunhos sem se enojar) foi a da hoje advogada Camila Correia Ribeiro, que foi abusada quando tinha 16 anos, na frente do pai, que ficou de costas e de olhos fechados por ordem do médium. No dia seguinte, a menina contou para a mãe. A família foi imediatamente na polícia. O que aconteceu? Nada.

A primeira juíza que cuidou do caso absolveu João de Deus porque, segundo ela, a menina "poderia ter reagido" e o pai a protegido. Como o pai poderia proteger de olhos fechados? E desde quando uma menina consegue reagir a uma coisa dessas, ainda mais vinda de um "guru"? A família recorreu. E outro juiz a desqualificou ainda mais. Disse que ela não teria juízo para falar acusar o médium porque sofria de síndrome de pânico e por isso não sabia distinguir fantasia de realidade.

Eu tenho síndrome do pânico. Isso é uma doença. A gente sofre. Mas, sim, a gente sabe o que é realidade. E, no caso de João de Deus, é uma realidade terrível.

Parem de diminuir as vítimas! Parem de nos chamar de loucas! Toda essa tragédia precisa, pelo menos, servir para alguma coisa.

Sobre a autora

Nina Lemos é jornalista e escritora, tem 46 anos e mora em Berlim. É feminista das antigas e uma das criadoras do 02 Neurônio, que lançou cinco livros e teve um site no UOL no começo de 2000. Foi colunista da Folha de S. Paulo, repórter especial da revista Tpm e blogueira do Estadão e do Yahoo. Escreveu também o romance “A Ditadura da Moda”.

Sobre o blog

Um espaço para falar sobre a vida das mulheres com mais de 40 anos, comportamento, relacionamentos, moda. E também para quebrar preconceitos, criticar e rir desse mundo louco.