Ameaças e vida em fuga: a rotina da ativista que denunciou João de Deus
"Não fala que eu estou em Berlim enquanto eu estiver aqui". A ativista Sabrina Bittencourt, de 38 anos, avisa isso antes de me encontrar, no dia 26 de dezembro de 2018, em um café da cidade. No momento, não pode dizer para onde está indo nem onde mora. Na verdade, conta que vive mudando de país. "Estou sendo ameaçada de morte. Não me sinto segura em lugar nenhum, mas tenho apoio de programas de ajuda a pessoas em risco, de muitos amigos. Estou bem e não vou parar", ela diz. Ela conta também com o apoio do Grupo Vítimas Unidas, que presta suporte para mulheres abusadas no Brasil.
Sabrina prefere não detalhar as ameaças. Mas elas apareceram, segundo ela, depois das denúncias de assédio sexual que culminaram na prisão do médium João de Deus. Sabrina é uma das responsáveis por fazer com que os casos viessem à tona: ela colheu depoimentos, atendeu as vítimas, ajudou na divulgação das histórias.
Ela conta que é ativista "desde sempre" e se dedica, no momento, a tentar desmascarar líderes religiosos abusadores. A mãe de três filhos sacrifica segurança, dinheiro e o simples fato de ter uma casa, por exemplo, pela causa. "É maior do que eu. É o que eu tenho que fazer. Não consigo ser de outro jeito", ela diz.
Sabrina conta que cresceu em uma família de classe média a de São Paulo, da religião Mórmon. Foi abusada desde criança, por pessoas da comunidade religiosa, um parente e um estuprador anônimo. Tudo isso deixou marcas profundas, segundo ela. Sabrina afirma sofrer de "transtorno dissociativo de memória". Mas ela conta que isso a deixou forte e com uma missão: a de apoiar os grupos vulneráveis. "Eu passei por isso, eu conheço essa dor".
No caso de João de Deus, seu envolvimento começou através de outro escândalo. "Vi uma nota na coluna da Mônica Bergamo [da Folha de S.Paulo] falando de supostos abusos por parte de Prem Baba. Fiquei muito preocupada porque tenho amigas que são suas discípulas. No mesmo momento, escrevi no Facebook que estava procurando denúncias de abusos de líderes religiosos famosos". Ela conta que, em três meses, recebeu mais de 100 denúncias de mulheres brasileiras e de outros países contando casos de abuso sexual cometidos por 13 líderes religiosos.
No momento, Sabrina atende 17 mulheres com risco de suicídio, segundo ela. E mais de 200 que a procuram, mas não precisam de tantos cuidados. "Elas são vítimas de abuso de líderes religiosos. João de Deus e outros. Muitas estão em situação vulnerável e me procuram". Sabrina está 24 horas por dia disponível para essas mulheres, ela conta. Por meio de uma rede de colaboradores, as encaminha para terapeutas e advogados. "Não dou conta de fazer tudo sozinha, mas também não vou falar 'não' para uma mulher que esteja, por exemplo, em risco de suicídio. Seria como um médico negar atendimento a um paciente".
Apesar de contar que o trabalho lhe tira o sono e afeta a sua saúde, a moça que encontrei para uma tarde de café e conversa em Berlim, onde ela passou seu aniversário e poucos dias de descanso, ainda consegue rir, está preparada para a luta e tem um monte de planos. Apesar de todos os problemas, ela responde que está "muito feliz", quando eu pergunto como ela está. Leia abaixo trechos da entrevista.
Como você se envolveu no caso do João de Deus?
Eu vi uma nota na Mônica Bergamo falando sobre o Prem Baba e escrevi no meu Facebook que estava aberta a receber denuncias de líderes religiosos, que iria ajudar. Pronto: em três meses, recebi 103 denúncias contra 13 líderes, de religiões diferentes. Quando jornalistas me procuram querendo fazer reportagens sobre o assunto, eu ajudo, eu aciono pessoas em quem confio. Mas sempre pensando na segurança da vítima. Você não pode, por exemplo, expor uma vítima, uma pessoa que está em uma situação vulnerável.
Você disse que atende várias mulheres. Você estudou psicologia?
Não, não estudei psicologia. Apenas vivi isso, tenho empatia. Em geral, sou a primeira pessoa que muitas vítimas procuram. Elas se sentem seguras comigo. Eu ouço, dou suporte e as encaminho para terapeutas que atendem de graça. Tem uma rede de pessoas que ajudam. Nada para mim é mais importante do que salvar uma vida. A minha família, meus filhos, todo mundo entende que eu preciso fazer isso, que é a minha função. Estou cuidando de 17 mulheres com risco de suicídio, fora as outras que me procuram. Mas, claro, não posso atender todas. Nem tenho condições emocionais e físicas para isso. Por isso, tento envolver o máximo possível de pessoas de confiança. Não quero assumir o papel de um médico, muito pelo contrário. Eu apenas ouço com empatia.
E como você faz esses atendimentos?
Eu tento focar na parte da regeneração, deixar claro que é normal existir, por exemplo, a raiva, depois de uma situação de abuso, mas que esse é também um processo em que a pessoa vai se ajudar e ajudar muita gente. E deixo claro que não sou uma heroína. Sou uma pontinha do processo. Heroínas são as mulheres que têm coragem de fazer essas denúncias. Digo que elas estão sendo heroínas delas mesmas e de outras mulheres.
Como fica a sua vida e a da sua família no meio disso?
Meu ex-marido, o Rafa, é um pai presente e me apóia. Sem a força dos meus filhos eu não conseguiria. O meu mais velho, de 16 anos, está bem protegido, com amigos, e viaja constantemente sempre para países onde não estarei. Os pequenos, de 10 e 8 anos, são cientes e conhecem bem os nossos protocolos de segurança. Tentamos, Rafa e eu, não assustá=los com as ameaças para que eles aproveitem a infância. Tenho uma rede de proteção valiosa. Tanto de gente que me conhece como as que não. Sei que estou incomodando muita gente poderosa, que agora colocou minha cabeça à prêmio. Mas também sou nutrida por pessoas de todo o mundo de amor.