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Nina Lemos

“Patrulha do decoro” proíbe alcinhas e decote em ambientes de trabalho

Nina Lemos

26/01/2019 04h00

Lidiane trabalhava em uma empresa que media comprimentos das saias (Arquivo Pessoal)

Semana passada, uma notinha em um jornal acendeu o radar feminino. A primeira dama do estado do Rio de Janeiro, Helena Witzel, teria "proibido" mulheres de usarem alcinha e decotes no Palácio das Laranjeiras, em nome do "decoro."

Não se sabe exatamente se isso realmente aconteceu, mas atitudes como essa são polêmicas, rolam com frequência, e podem ser consideradas ilegais, segundo a advogada trabalhista Magna Moreira. Ela afirma que tomar esse tipo de decisão seria "arbitrariedade". E poderia também ser considerado "discriminação de gênero."

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"Em se tratando de servidores públicos, existe um estatuto para a categoria, além de portarias que regulamentam. E, acima de tudo, temos a Constituição Federal", tanto no capítulo dos direitos e garantias individuais, quanto no que diz respeito à administração e aos servidores públicos", explica Magna.

No dia-a-dia, muitos chefes ignoram as questões jurídicas, se fazem de desentendidos, e apenas aplicam a patrulha do decoro sem dó (aquela que proíbe mulheres de se vestirem de maneira "provocante", o que pode significar, por exemplo, um vestido de alcinha, no verão de 50 graus carioca).

"Já levei um beliscão na perna por parte da minha chefe para checar se eu estava usando meia calça ou legging", diz a gerente de um banco de investimentos Mariana (nome fictício). A tal chefe a proíbe de usar qualquer vestido que seja acima do joelho, checa decotes e proíbe blusas de alcinha e calças leggings.  Segundo Mariana, os homens não sofrem esse tipo de cobrança, "enquanto a gente tem que se preocupar até com o tamanho da manga."

A empresa em que ela trabalha possui um dress code (código de vestir), o que não é ilegal. O absurdo, segundo ela, é que a chefe muda esse código de acordo com a própria vontade e o pior sempre cai em cima das mulheres.

"A lista do código de vestimenta da empresa diz que podemos usar calça social skinny, por exemplo, mas ela proíbe. Já fui advertida por usar um vestido abaixo do joelho e de manga só porque ele era de renda, e com forro, claro. Isso também não fazia parte da lista. Mas nunca mais pude vesti-lo."

Lidiane Andrade passou pela mesma situação quando trabalhava em um call center em São Paulo. No banheiro feminino havia plaquinhas que diziam que mulher tinha que usar saia só cinco centímetros acima do joelho e evitar decotes. Quem não seguisse essas regras, tomava advertência. Com três advertências, era suspenso e recebia desconto na folha de pagamento. 

Decote pode distrair os pedreiros!

Os argumentos usados por chefes que exigem "decoro feminino" no trabalho em geral são aqueles dos anos 50: uma mulher com roupa curta poderia distrair um homem, tirar sua atenção. Ou seja, homem não consegue se controlar em frente a uma figura feminina.

Lidiane, depois do call center com cartazes no banheiro, trabalhou em um ambiente mais descontraído, um clube noturno. Mas… lá veio a patrulha de novo.

"O escritório onde eu trabalhava estava em obras, então um dos sócios me proibiu de usar blusinha de alça porque dizia que podia chamar a atenção dos pedreiros. Eu sempre costumava ir de bermuda, legging e blusinhas por causa do calor. Eu estava grávida! Até que um dia ele chegou falando ríspido comigo que não queria mais que eu usasse roupa decotada porque ali estava cheio de homem e ia ficar chamando a atenção deles." Lidiane teve que praticamente comprar um novo guarda-roupa com o próprio dinheiro para manter o emprego.

A produtora Marieta Scatamburgo passou por situação parecida. "Eu trabalhei com futebol na MTV por oito anos, produzia o "Rockgol" e o "Rockgol na Mesa". Uma vez meu diretor me chamou para me falar que eu tinha que tomar cuidado nas gravações do programa. Ele disse que quando eu tivesse que ir até a mesa, deveria evitar ficar de costas para o pessoal da técnica porque eles ficavam focando na minha bunda e fazendo comentários maliciosos entre eles!" Marieta ficou chocada. "Como pode? O cara veio me 'dar um toque' para eu mudar meu comportamento, ao invés de repreender os caras da técnica sobre a atitude deles!", desabafa.

Claro que existem códigos sociais e ninguém aqui está falando em trabalhar de biquíni. Existem, sim, ambientes onde homens trabalham de terno (e morrem de calor e pode ser horrível) e mulheres de saia. A vida é assim. Mas discriminação e abuso em nome do "decoro" ou para "não provocar" homens não é legal (em todos os sentidos).

Marieta tomou bronca pela atitude dos colegas (Arquivo Pessoal)

A empresa pode fazer isso?

Segundo Magna Moreira, depende de como é feito.

"De acordo com a lei, a exigência de determinado tipo de roupa deve ser objeto de regulamentação no ambiente de trabalho. Deve estar em um regulamento interno que é conhecido por todos."

Em outras palavras, uma empresa pode, sim, exigir uniforme para homens e mulheres, mas isso está no regulamento e deve valer para todos. O mesmo para trajes mais "formais" — em muitas empresas homens têm que usar terno, mulheres tailleur ou calça social.

Tudo bem se isso é acordado antes e fica claro para todas as partes. Mas uma pessoa, tipo uma gerente, no caso, não pode decidir da própria cabeça como as funcionárias devem se vestir. Ou simplesmente mudar as regras. É uma questão jurídica. E também de respeito com as funcionárias.

Sobre a autora

Nina Lemos é jornalista e escritora, tem 46 anos e mora em Berlim. É feminista das antigas e uma das criadoras do 02 Neurônio, que lançou cinco livros e teve um site no UOL no começo de 2000. Foi colunista da Folha de S. Paulo, repórter especial da revista Tpm e blogueira do Estadão e do Yahoo. Escreveu também o romance “A Ditadura da Moda”.

Sobre o blog

Um espaço para falar sobre a vida das mulheres com mais de 40 anos, comportamento, relacionamentos, moda. E também para quebrar preconceitos, criticar e rir desse mundo louco.