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Nina Lemos

Por que Marielle Franco virar nome de rua em Paris incomoda brasileiros?

Nina Lemos

03/04/2019 04h00

Foto: Fabio Motta/ Estadão Conteúdo

Uma mulher brasileira de 38 anos, batalhadora, que nasceu na favela e enfrentou um monte de percalços para conseguir fazer faculdade e criar sozinha uma filha foi assassinada a tiros. A prefeitura de Paris resolveu homenageá-la com o nome de uma rua na cidade. Claro, estou falando de Marielle Franco.

Quando vi a notícia de que a prefeita Anne Hidalgo daria o nome da ativista e socióloga para um rua, fiquei feliz. E, com a fé na humanidade que ainda tenho, imaginei que todo mundo ficaria feliz também (principalmente, as mulheres). No mínimo, achei que as pessoas achariam ok. Não achei que ninguém fosse odiar ou se revoltar com uma homenagem dessas.

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Eu estava errada. Muitos brasileiros (inclusive mulheres) manifestaram ódio em relação à homenagem. Como?

"O que essa mulher fez para merecer isso?", "Paris não é mais a mesma, eu, heim, essa prefeita deve ser comunista. Logo Paris vai virar a Venezuela", "Eles devem estar com falta de gente melhor para homenagear, não é possível", "Sério, sinceramente esse povo não tem mais o que fazer. Tem muita gente mais importante do que essazinha aí".

Essas são mensagens leves perto das que li nas redes sociais em comentários sobre a notícia. Aquelas, em que chamam Marielle de "feia", usam de racismo e comemoram sua morte não serão reproduzidas neste texto, assim como as que reproduzem fake news (sim, ela é alvo de difamação depois de morta!).

Bem, Marielle era uma mulher vereadora de um partido de esquerda e ativista dos direitos humanos (o que era para ser uma coisa boa, não?). Mas meu lado que tem fé na humanidade acha que, em um caso desses, partido político não devia fazer diferença. Briga de esquerda versus direita quando uma mulher é morta covardemente? Apoiar uma barbárie dessas não tem nada a ver com ideologia. É falta de humanidade, mesmo.

Marielle, acho, deveria ser um símbolo e uma mulher admirada para todos, até daqueles que se dizem a favor da "família" e da "meritocracia" (ela era, além de mãe dedicada, superapegada à familia de origem, uma boa filha, boa irmã). E, sim, ela enfrentou muitos obstáculos para fazer faculdade e virar uma mulher bem-sucedida.

Placa rasgada

Por que ela ser nome de rua em Paris incomoda tanto? Arrisco alguns palpates. Um deles é o ódio por ela ser uma mulher de esquerda (e, repito, não acho que a preferência política devia contar quando alguém é morto com um tiro na cabeça. Nenhum assassinato deve ser celebrado).

Outro motivo que arrisco é o fato de que Marielle era feminista e lésbica. No momento, feministas são odiadas e ameaçadas de morte, caso da professora Lola Aranovich. Lésbicas são agredidas. Marielle, mesmo depois de morta, continua incomodando, e sendo odiada porque, ainda bem, nunca vai deixar de representar essas causas e de ser ela mesma.

Temos que lembrar que, em outubro do ano passado, uma placa de rua com o seu nome (uma manifestação popular, não oficial) foi quebrada por dois homens, que tiraram foto e postaram nas redes sociais com orgulho, como se destruir a placa com o nome de uma mulher morta fosse um troféu. Um deles foi eleito deputado federal.

"Como pode, agora, ela ser nome de rua oficialmente em Paris. Isso só pode ser fake news", pensam os que vão na onda da barbárie.

E tem mais: a homenagem ser em Paris deve incomodar ainda mais os preconceituosos, os racistas. O fato de uma mulher negra da favela virar nome de rua em Paris deve ofender muita gente, aquelas mesmas que achavam que "aeroporto está virando rodoviária".

Ver Marielle reconhecida no mundo todo é muito bom. Mas ver que ela é odiada em seu próprio país, mesmo depois de morta, é muito triste. Como podem odiar uma pessoa que foi assassinada cruelmente e que não tinha feito nada para merecer uma coisa dessas? Pelo contrario, ela tinha denunciado milícias que perturbavam a vida de moradores de comunidades.

É difícil manter a fé na humanidade nessas horas. Marielle, livre, corajosa, ainda assusta muita gente. E o ódio a ela assusta a gente que ainda tem um pouco de fé na humanidade. Dureza…

Sobre a autora

Nina Lemos é jornalista e escritora, tem 46 anos e mora em Berlim. É feminista das antigas e uma das criadoras do 02 Neurônio, que lançou cinco livros e teve um site no UOL no começo de 2000. Foi colunista da Folha de S. Paulo, repórter especial da revista Tpm e blogueira do Estadão e do Yahoo. Escreveu também o romance “A Ditadura da Moda”.

Sobre o blog

Um espaço para falar sobre a vida das mulheres com mais de 40 anos, comportamento, relacionamentos, moda. E também para quebrar preconceitos, criticar e rir desse mundo louco.