Mulheres que fizeram trabalho infantil revelam traumas: "Machuca demais"
"Minha mãe era separada, trabalhava como doméstica e meu pai não pagava pensão. Por isso, quando tinha 14 anos comecei a trabalhar. Primeiro fiz uns trabalhos de babá, depois, quando fiz 15, meu 'presente' foi começar a trabalhar de 'verdade' em uma loja de cimento, onde sofri abuso." Quem conta isso é a jornalista Perla Guzy, de 41 anos, que já fez parte de uma triste estatística, a dos menores de idade que trabalham no país para ajudar em casa simplesmente porque a família não tem dinheiro para bancar tudo.
Atualmente, no Brasil, há 2,7 milhões de pessoas entre 5 e 17 anos trabalhando (a lei brasileira permite que maiores de 16 trabalhem, mas é uma permissão parcial). Em duas áreas, as meninas são a maioria: trabalho doméstico e exploração sexual.
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"Eu passava um dia no meio a um monte de saco de cimento, que são nocivos para a saúde, em um ambiente onde só tinha homem. Um dia, recebi uma carta de um velho que trabalhava lá. Era uma mensagem pornográfica. Aquilo me marcou para sempre. Eu me culpava, não entendia se tinha feito algo errado", conta Perla.
Ela saiu desse trabalho, com apoio dos pais, que ainda denunciaram o caso na polícia. Mas não parou de trabalhar. "Primeiro em uma loja, depois como recepcionista em uma distribuidora. Eu era humilhada. Não era um aprendizado, aquilo era pura e simples exploração de menor", diz Perla.
O assunto "trabalho infantil" (que é proibido no Brasil e condenado por todos os órgãos internacionais) veio a tona semana passada, quando o presidente Jair Bolsonaro disse em uma live, e depois no Twitter, que o trabalho não prejudicava ninguém, independentemente da idade."Quando um moleque de nove, dez anos, vai trabalhar em algum lugar, tá cheio de gente aí 'trabalho escravo, não sei o quê, trabalho infantil'," disse. No fim de semana, o tema voltou a ser discutido no Twitter.
O blog conversou com mulheres que trabalharam quando crianças. Elas carregam traumas dessas experiências, lutam contra isso e não, elas não deixariam que seus filhos ou netos passassem por isso.
"Difícil não crescer envenenada"
A artista Jacira Roque de Oliveira, mãe dos rappers Emicida e Evandro Fioti, começou a trabalhar com 11 anos. "Fui colocada no mercado trabalho junto com adultos. Era faxineira de uma loja no Bom Retiro, em São Paulo, e no meio disso ainda fazia bordados, era explorada, não tinha hora para sair", ela conta.
Desde então, ela não parou. "Trabalhei em fábrica de biscoito, em casa de família, sofri ameaça de estupro com 11 anos de idade. Essa é uma coisa que machuca demais a criança. Você tem que ter um coração muito bom para não crescer envenenada", diz. Ela conta que na periferia onde morava (e ainda mora) na zona leste de São Paulo, isso era o normal.
"Todas as minhas colegas iam trabalhar em casa de família com essa idade. Lembro de conversas na escola em que mães e professoras diziam que as alunas tinham de sair logo assim que soubessem escrever, porque sabendo escrever ganhariam mais.
Jacira foi expulsa da escola por uma professora. "Ela disse que eu escrevia muito, que já sabia escrever, era hora de pegar na vassoura e no rodo. Eu não tive infância, eu não pude brincar."
Mãe e viúva aos 20 e poucos anos, ela nunca deixou que seus filhos passassem pela mesma experiência. "Eu fazia bicos, levava coisas para vender na feira e os meninos iam junto. Eles tinham que ir. Mas eu não deixei jamais que ficassem na mão de outra pessoa. Ficavam onde eu pudesse olhar e cuidar."
Muitas vezes, ela conta, os vizinhos tentavam levar seus filhos mais novos, os hoje músicos de sucesso, para trabalhar. "Falavam: 'manda o seu menino para ser pedreiro comigo'. 'Tem entulho para carregar lá, manda seu filho.' Eu dizia 'não! De jeito nenhum! São crianças, eles não vão!' Nunca permiti. Quando eles eram um pouco maiores, minha filha mais velha cuidava deles quando eu ia trabalhar. Sei que isso não era legal, mas era a única opção que tínhamos."
Hoje, quando vê os netos com possibilidades melhores, não consegue nem imaginar a possiblidade de que eles tivessem que passar pelo que ela passou. "De jeito nenhum, meus netos são crianças, ainda bem que eles podem brincar, ter lápis de cor, coisas que nunca tive." Para ela, proteger crianças para que elas não trabalhem "é uma questão de direitos humanos básicos."
Perla, que hoje mora nos Estados Unidos e trabalha como jornalista, também não deixa passar abuso de menores. "Na minha casa, eu e minha irmã somos leoas quando o assunto é esse. Não aceitamos que uma criança seja explorada, viramos bicho. Não tenho filhos, mas se tivesse, jamais deixaria que passasse pela situação que passei. Quando trabalhava no Brasil, cheguei a prestar serviço voluntário de conscientização de crianças em escolas", conta.
Trabalho na roça aos 6 anos
Assim como Dona Jacira, a mãe da advogada Kamyla Sacramento, de 30 anos, faxineira, nunca deixou que a filha trabalhasse quando criança e adolescente por ter sentido a dor do trabalho infantil na própria pele. "Minha mãe começou a trabalhar aos seis anos de idade na roça. O pagamento era de acordo com o que ela conseguia carregar com as mãos dela, mãos de criança, olha o tamanho do absurdo! Depois, ela ficou órfã e foi criada por uma madrinha, que a colocou para trabalhar em casa de família", conta Kamyla.
"Tenho muito orgulho da minha mãe. E ela nunca na vida deixou que eu e meus irmãos trabalhássemos quando crianças. Sempre nos incentivou a estudar. Tanto que, como era boa aluna, fiz faculdade pelo Prouni e hoje sou advogada. Hoje, trabalho com licitações em uma empresa de instrumentos musicais e mãe continua a trabalhar com faxineira, mas sem vínculos. "Ela passou por muita humilhação trabalhando em casa de família, por isso prefere hoje trabalhar de faxineira por dia, é melhor para ela."
Outro dado importante, o Brasil é o país com o maior número de empregadas domésticas do mundo, segundo a Organização Internacional do Trabalho. Segundo a OIT, em 2008, o número de crianças trabalhando como domésticas foi estimado 4,7 milhões em todo o mundo.
"Quando eu era criança, era normal adotarem uma menina do nordeste, por exemplo, para que ela fizesse todo trabalho da casa. Era escravidão. Tudo isso não pode voltar a ser normalizado. É uma questão de direitos humanos", diz Jacira, com a experiência de quem passou por isso. E, com muita dificuldade, superou. "Não foi fácil, fiquei com problema de saúde, tive depressão, problema com álcool. Só há dez anos parei de tomar remédio. São coisas que te marcam para sempre."