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Nina Lemos

Homens que riem de mulher apanhando têm saudades de quando era ok ser ogro

Nina Lemos

17/07/2019 04h00

 

O ex vocalista do Panteras

Phil Anselmo, do Pantera: é tempo de ser ogro? Marco Peron/UOL

"No meu tempo é que era bom. Não tinha essa frescurada de gente vegana, a gente podia falar de um monte de mina, tá, ligado? Podia fazer piada de gordo, ninguém ligava." Já ouvi muito esse tipo de conversa saudosista de um tipo de sujeito: a maioria deles da minha idade (entre seus 40 e poucos e mais de 50) com gosto de roqueiro, camisa de banda e uma nostalgia de um tempo em que podiam fazer piadas de viado e de "barangas" (inclusive na frente de mulheres) sem reclamações.

Eles são os caras representantes do "orgulho ogro". Eles acham superlegal ser ogro.  Só que ser tosco, mas tosco mesmo, não é uma coisa que se tolere hoje em dia. Quanto menos se tolera, mais toscos eles ficam. Como se fizessem manha. Oh, dó.

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Lembrei-me desse tipo de sujeito  quando vi o caso da hamburgueria "Underdog", em São Paulo. Para quem não sabe, eles provocaram polêmica essa semana ao postar vídeo com uma mulher apanhando (tapa na cara mesmo) e depois exibindo um olho roxo. Pelo Instagram da casa e pelo que já ouvi do lugar, a hamburgueria é uma espécie de templo do orgulho ogro. Do tipo: "gostamos de carne mal passada, não precisamos tratar bem os clientes. Somos assim e pronto."  Até aí, nenhum problema. Quem quiser ir que pague. Existe espaço para todos, até para os saudosistas da época em que se podia ser ogro em paz. 

Acontece que, mais uma vez (não é a primeira vez que os donos se envolvem em polêmicas), eles passaram do ponto (e não foi na carne, no caso) ao postar esses vídeos, em que fazem uma espécie de esquete com a funcionária apanhando. Ela, literalmente, leva tapas na cara. Isso, em um mundo onde a violência doméstica é epidêmica.

Claro, foi um escândalo. Isso porque essas coisas não passam mais batido, não. Muita gente pediu boicote da casa e foi na página reclamar (quem fez isso recebeu patadas do dono.) Em entrevista para Universa, o dono da casa, Santi Roig, disse que não pediria desculpas, porque não sentia que precisava. "Seria falsidade. É uma pena que não se pode mais fazer esse tipo de humor. Não pode mais falar de gordo, por exemplo. Teoricamente, eu sou um macho branco e poderia me ofender quando dizem isso para mim".

Ô, coitado. Estamos falando de bullying e assédio, de pessoas que passaram anos sofrendo gordofobia, de violência, não de ser homem branco privilegiado. Meu deus! Desenhando: se você chamar essa blogueira de mulher branca, isso não é ofensivo. Se me chamar de galinha, vagabunda etc. aí é, sim.

Quanto ao fato de não poder fazer piada de gordo, bem, você até pode fazer. Mas vai ter que arcar com as consequências. Ou seja,  vai ouvir de volta, vai ter gente boicotando seu restaurante (um direito) ou deixando de falar com você. Quem engoliu por anos absurdos calados simplesmente se cansou. E vocês, tadinhos, que lidem com isso. 

"O tempo passou na janela e só Carolina não viu", já cantava Chico Buarque. Pois é. O tempo passou. E alguns carolinos ficam por aí com esse mimimi (uma das expressões que essas pessoas adoram) de que "ai, mundo chato", "ai, tadinho de mim", "ai, não posso fazer piada de viado", "ai, nem posso fazer vídeo de mulher apanhando que ninguém entende a piada." Ó vida, ó, azar.

Claro que a hamburgueria é apenas um exemplo pequeno do orgulho ogro. Existem caras assim no mundo todo. Sabe aqueles sujeitos do metal, que quebravam hotel, tratavam groupies de qualquer jeito e eram muito machos? Pois é, alguns deles continuam iguais…

Um exemplo. Em 2016, o ex vocalista do Pantera, Phil Anselmo, foi filmado por fãs fazendo um gesto nazista e falando: "White Power!", a frase é usada por supremacistas brancos americanos. O que ele disse depois? Ah, que era uma piada, claro. Na verdade, ele estaria falando de vinho branco.  Com certas coisas não se brinca. O vocalista foi criticado, com razão, em toda cena.

Existe salvação e autocrítica!

Muitos caras que tiveram no passado comportamento ogro, sexista, e até escreveu coisas bem ofensivas sobre mulheres, hoje admitem que eram idiotas, que o tempo mudou. Recentemente, Marcelo D2 declarou que já foi machista. Em entrevista à revista "Marie Claire", ele disse:  "Tem uma música do Planet (Hemp) que se chama "Puta disfarçada" que eu tenho vergonha, a gente não canta desde 95. Eu fui criado por mulheres que tinham uma atitude superfeminista, mas tinham um discurso machista. Eu tenho duas filhas, é um exercício diário não ser um machista, eu peço desculpa internamente e o que eu posso fazer daqui pra frente é me policiar e tentar mudar. Dá vergonha, tá ligado?"

O mesmo vale para Mano Brown, que não toca mais certas músicas em shows e assume que é machista e que tenta melhorar. Palmas para esses que acordam e tentam mudar. E, sério, eles ficam muito mais legais quando antenados com o tempo do que se fossem saudosistas da época em que humilhar o outro era normal e divertido (bem, divertido só para eles, né?).

A vida é assim, a gente pode aprender, pode mudar. Até Gene Simmons, do Kiss, fez sua autocrítica. O cara, que antes se orgulhava de já ter transado com mais de 5 mil mulheres, recentemente declarou: "Eu era um porco sexista." Ele fez isso aos 69 anos. Sim, existe tempo de mudar. Para todos. A outra alternativa é ficar reclamando na janela: "oh, ninguém entende as minhas piadas, ah, o mundo ficou chato." É só escolher.

Sobre a autora

Nina Lemos é jornalista e escritora, tem 46 anos e mora em Berlim. É feminista das antigas e uma das criadoras do 02 Neurônio, que lançou cinco livros e teve um site no UOL no começo de 2000. Foi colunista da Folha de S. Paulo, repórter especial da revista Tpm e blogueira do Estadão e do Yahoo. Escreveu também o romance “A Ditadura da Moda”.

Sobre o blog

Um espaço para falar sobre a vida das mulheres com mais de 40 anos, comportamento, relacionamentos, moda. E também para quebrar preconceitos, criticar e rir desse mundo louco.