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Nina Lemos

Por que ficamos viciadas em um reality cafona como "Casamento às Cegas"?

Nina Lemos

06/03/2020 04h00

 

Reproducao

O que eu e muitos de vocês temos em comum com a Kim Kardashian? A gente está viciado por "Casamento às Cegas", o reality que é a sensação do momento do Netflix. O programa, que está entre os mais vistos da plataforma no mundo, vicia seriamente.  E, o mais bizarro de tudo: ele é, por um lado, lixo puro.

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Para quem ainda não se viciou (cuidado!) ter uma ideia, trata-se do seguinte: um "experimento" onde solteiros e solteiras são colocados em alas diferentes de uma casa, sem se encontrar. O único contato que tem é por conversas em cabines. Ali, vão escolher seus pares, sem nunca se ver. Só conversando. Alguns casais parecem estabelecer uma verdadeira conexão emocional e dizem eu te amo sem nunca terem se visto, choram, contam a vida.

Depois de um tempo, os que ficam noivos, se vêem finalmente e já dizem que sim para um noivado, com direito a homem ajoelhado e anel.  Para aumentar a cafonice: os casais que disseram sim são levados para alguns dias de lua de mel em um resort no México. E, depois de algumas semanas de convivência, onde passam por partes importantes, como, por exemplo, conhecer os pais, se encontram no altar para dizer se ficarão juntos ou não.

Sim, eles decidem na hora. Há mais de uma cena de noiva sendo deixada no altar, choros, drama. Resumo: a experiência toda é trash. Mas ao mesmo tempo não conseguimos parar de ver pensando: "será que eles vão dizer sim ou não?" Será que o pai da Lauren vai aceitar o Cameron, mesmo ele sendo branco, já que ela é negra é seu pai tem suspeitas a respeito de relacionamentos interraciais? "Será que a Jessica finalmente vai se decidir e ficar com o Mark?" "Gente, ele é um fofo." 

Sim, esses pensamentos passam a tomar parte da nossa vida e não conseguimos parar de ver. Agora, que zerei, corri para ver o reencontro de todos eles, que estreou ontem. E, além de segui-los no Instagram, espero ansiosa pela parte 2.

Mas atenção, eu não estou maluca sozinha. A febre é tão grande que já existe venda de pacote para o resort de "Casamento às Cegas" no México!

Como gostamos dessa caretice? 

Uma das coisas mais impressionantes sobre adquirir esse vício em 2020 é que o programa é… careta!  

Sim, o seriado é bem americano, a palavra noivo é repetida várias vezes, elas usam aqueles anéis de noivado chamativos. E, problema,  todos os participantes são jovens, na casa de 20 e poucos anos e são esteticamente dentro do padrão esperado pela sociedade. Então, quando a porta se abre e os casais finalmente se encontram, não existe muita crise.  A única participante de 35 anos é considerada uma velha encalhada. Todos são héteros, menos um rapaz um bi, que leva um fora. Ou seja, "Casamento às Cegas" é completamente conservador e vendedor da ideia do amor princeso entre homem e mulher que vão formar família. E a gente, moderna, esperta, continua assistindo e ama. Por que? Arrisco algumas teses:

Somos sádicos

Sim, todos nós gostamos de ver sofrimento dos outros, senão os realities s não fariam sucesso e o BBB não estaria na vigésima edição.  Somos voyeurs malucos da vida alheia, com sede de sangue e lágrima. E o que mais gostamos de ver é striptease emocional das pessoas. E, nisso, "Amor às Cegas" acerta em cheio.  O programa mostra pessoas se abrindo, chorando. E estão ali pessoas com dificuldades de relacionamento, aquela que acha que se autossabota, aquela que fica amiga dos caras legais. Todas nós já fomos algumas dessas pessoas, ou ainda somos. Então, gostamos de nos ver repetidas. E, claro, melhor ver o outro sofrendo do que cuidar dos nossos problemas. 

Temos um lado princesa adormecida

"E no final, foram felizes para sempre." A gente deve ter ouvido tanta história que acabava assim quando era criança que ficou viciada, mesmo que inconscientemente, em gostar de um conto de fadas. Imagina, se apaixonar por alguém rapidamente, casar, e essa ser a pessoa da sua vida, com quem você vai ficar para sempre? Imagina sua vida mudar rapidamente? Esse é um sonho antigo. E, sim, vamos assumir, estamos falando em um príncipe montado em um cavalo branco, por mais que a gente negue isso.

O mundo anda muito complicado e queremos fugir

Essa é a explicação mais óbvia. Ninguém aguenta essa realidade de 2020, com crise econômica, desemprego bombando, insegurança geral sobre o futuro, coronavírus. Os participantes de "Amor às Cegas" assumem um risco ao casar com quem conhecem faz pouco tempo? Sim, ah, mas isso não se compara nem um pouco com o risco que é viver em 2020, esse ano feito para fortes!

De perto ninguém é normal

A frase do Caetano Veloso vale para os participantes do programa, que, como acontece na maioria dos realities, conforme se abrem, vão mostrando suas esquisitices. E também para nós, espectadores. Quem não tem algum prazer secreto e um vício escondido? Todos. "Casamento a Cegas" é apenas o do momento.

Algo tem que dar certo (nem que seja o relacionamento de desconhecidos)

Sim, estamos tão desesperadas nesses tempos de boys lixos, homens que desaparecem e e deixam no vácuo e todas as outras razões citadas acima, que nos consolamos quando alguma coisa dá certo. Nem que seja um casal formado em um reality show por pessoas que não conhecemos. Falando nisso, Lauren e Cameron, continuem juntos , por favor!

Sobre a autora

Nina Lemos é jornalista e escritora, tem 46 anos e mora em Berlim. É feminista das antigas e uma das criadoras do 02 Neurônio, que lançou cinco livros e teve um site no UOL no começo de 2000. Foi colunista da Folha de S. Paulo, repórter especial da revista Tpm e blogueira do Estadão e do Yahoo. Escreveu também o romance “A Ditadura da Moda”.

Sobre o blog

Um espaço para falar sobre a vida das mulheres com mais de 40 anos, comportamento, relacionamentos, moda. E também para quebrar preconceitos, criticar e rir desse mundo louco.