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Nina Lemos

Roberto Justus, 64 anos, e a pandemia que escancara o desprezo por idosos

Nina Lemos

24/03/2020 04h00

 Antes da epidemia de coronavírus chegar, a gente estava discutindo etarismo (preconceito contra a idade). Falávamos sobre as pessoas sofrerem preconceito no trabalho por serem mais velhas, por exemplo. Sim, isso é um absurdo. Mas acontece. Só que tudo pode piorar. Veio a pandemia. E, agora, estamos vendo gente adotar uma postura que parece dizer: "deixa velho morrer!"

Essa postura já foi adotada pelo presidente Jair Bolsonaro, 65. E agora, foi a vez de Roberto Justus, 64, tratar os mais velhos (como se eles mesmos fossem jovens) como estatística, como "uns velhinhos aí", em tom mais que desrespeitoso. 

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Em áudio trocado em um grupo com o apresentador Marcos Mion (que vazou no domingo e é verdadeiro, o próprio Justus admitiu a autoria) ele faz afirmações absurdas sobre a pandemia. Exemplo: "Quem entende mesmo de estatística vê que os números são irrisórios. E quem morre mesmo são os velhinhos. E, mesmo dos velhinhos, só 10%, 15% deles morrem."  

Roberto Justus trata pessoas como números, como ativos da bolsa de valores. Sim, sua maior preocupação, ele diz, é com a economia. Claro, todos estamos preocupados com isso. Mas, atenção, existem vidas em risco. E todas elas (independente da idade) são importantes. Depois de o áudio vazar. Justus publicou um esclarecimento em seu Instagram. Reafirmou que falava de estatísticas. E disse, por exemplo, que a fome mata mais no Brasil, assim como acidentes de carro. Disse também que sentia muito pelas mortes. Mas continuou falando de estatísticas..

Veja bem, Roberto Justus, atrás desses números estão pessoas. Essa pessoa poderia ser o seu pai. E pode, inclusive, ser você. Como também pode ser eu, ou qualquer um que lê esse texto. O vírus, como se sabe, não poupa ninguém. E, mesmo se poupasse, a gente não decide que uma parte da população pode morrer, desde que não afete a economia.

Justus, que no áudio trocado com Mion repete várias vezes a palavra "velhinhos", afirmou no esclarecimento que está em isolamento. Que bom. Então, ele poderia entender que todas as medidas tomadas mundo afora (como o isolamento social, fechada de fronteiras, de comércios etc) tem esse objetivo: fazer com que os casos de coronavírus parem de crescer em ritmo muito rápido. Isso para ajudar, inclusive, pessoas como ele. 

Nova peste?

Atitudes como a de Justus aumentam o risco da pandemia de coronavírus ficar marcada como uma "epidemia de velhos" (o que não é verdade!).  A Aids, por exemplo, foi, no início, chamada de "peste gay". Os homossexuais, além de sofrerem com a epidemia, ainda passaram por preconceitos horríveis por causa da doença. Hoje sabemos que todos podem ser contaminado por HIV. Vamos repetir o absurdo?

Justus afirma também que, dos mortos pelo vírus:  "Todos foram velhinhos ou tinham algum problema de saúde, algum problema pulmonar ou diabetes."  Mesmo se fosse verdade, ele está dizendo que é ok uma pessoa que tem uma doença pre-existente como diabete morrer?  Eu imagino o quanto deve doer para um idoso ou para um diabético ouvir alguém falar uma coisa dessas.

No discurso histórico que fez na TV, onde chegou a dizer que a pandemia era o momento mais difícil da Alemanha desde o Segunda Guerra Mundial (e não uma "gripezinha"), a chanceler Angela Merkel disse o seguinte: "não são números, são pessoas! É o avô, o pai de alguém, um companheiro, um amigo." Para Justus, são números. "Só 10%, gente, deixem de histeria!"

O mais triste

A lógica do empresário é a mesma do Presidente da República, que chamou mais de uma vez as precauções para conter o vírus, como o isolamento, de histeria. "Vão morrer alguns? Sim, mas não devemos deixar esse clima prejudicar a economia."  "Não é tudo o que dizem (a pandemia), quem é idoso ou deficiente pode ter problema."  

Além de mostrar uma falta de empatia absurda com o povo (repito, não são números, são pessoas) e ignorância (existem várias "deficiências". Um deficiente visual, por exemplo, não é parte do grupo de risco) o presidente cometeu o etarismo (preconceito contra velhos) e o capacitismo (preconceito contra deficientes). 

Mais um efeito colateral dessa pandemia: estamos vendo muita gente mostrar a verdadeira face. E, sim, estamos todos preocupados com a economia também. Inclusive porque sabemos que quem vai pagar não vai ser Roberto Justus, nem Jair Bolsonaro, mas a gente da classe média e os mais pobres.

Sobre a autora

Nina Lemos é jornalista e escritora, tem 46 anos e mora em Berlim. É feminista das antigas e uma das criadoras do 02 Neurônio, que lançou cinco livros e teve um site no UOL no começo de 2000. Foi colunista da Folha de S. Paulo, repórter especial da revista Tpm e blogueira do Estadão e do Yahoo. Escreveu também o romance “A Ditadura da Moda”.

Sobre o blog

Um espaço para falar sobre a vida das mulheres com mais de 40 anos, comportamento, relacionamentos, moda. E também para quebrar preconceitos, criticar e rir desse mundo louco.