Morte de Miguel deveria ser motivo para revolta como a que ocorre nos EUA
Estamos todos acompanhando os protestos nos Estados Unidos pelo assassinato de George Floyd, um homem negro de 46 anos, morto por um policial branco em Minnesota. Mostramos nossa solidariedade em redes sociais, escrevemos que vidas negras importam. Deveriam importar mesmo. Mas, enquanto isso, ao nosso lado, acontece uma história de terror. E aí? O que vamos fazer?
A história de horror que me refiro infelizmente é real e reúne muitas camadas do absurdo que é nossa sociedade escravocrata: uma mãe é obrigada a trabalhar como empregada doméstica em uma casa de família durante a pandemia. Seu filho é tratado com descaso pela patroa. E morre.
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Miguel Otávio Santana da Silva tinha cinco anos. Sua mãe, Mirtes Renata, não foi dispensada do trabalho. Sem creche, teve que levar o filho junto quando foi trabalhar. O que sabemos até agora: sua patroa, Sari Corte Real, mulher do prefeito de Tamandaré (PE), Sergio Hacker, estava no apartamento acompanhada de uma manicure, fazendo as unhas. Mirtes foi passear com o cachorro da família. Miguel ficou com a patroa. Chorou, pediu pela mãe. O menino de cinco anos foi deixado sozinho no elevador. Foi parar no 9o andar. Caiu. Morreu.
A patroa, de uma família poderosa, foi autuada por homicídio culposo (sem intenção), pagou 20 mil reais e está livre.
Todos os horrores pelos quais passam uma mulher negra e pobre no Brasil estão dentro dessa história. E todos os absurdos cometidos por uma elite criminosa também.
Como uma mulher rica pode achar que precisa de serviços de babá e manicure durante uma pandemia mundial? O certo, o óbvio, seria pagar pelos serviços e avisar que suas funcionárias não precisavam vir, certo?
O tratamento ao "filho da empregada" também fica explícito, e faz lembrar o filme "Que horas ela volta?" (2015), de Anna Muylaert, em que uma patroa surta porque a filha da empregada era muito mais inteligente que seu filho e, diferentemente da mãe, cobrava seus direitos e ocupava seu espaço. Filhos de empregada são tratados de maneira diferente. No filme, por exemplo, o sorvete de marca era só para o filho da patroa.
No caso de Sari, alguém acha que ela colocaria uma criança de cinco anos sozinha no elevador se ela fosse filha de um amigo da mesma classe social que ela? Ou teria mais cuidado?
É muito fácil olhar para essa história com horror, chorar. Conheço muitas pessoas que se abalaram emocionalmente com o caso (eu incluída). Mas a gente ficar mal e assinar abaixo assinado de repúdio é muito pouco, não?
Precisamos pensar em fazer uma mudança profunda nessa sociedade. O Brasil é o país com mais domésticas do mundo. Quantas pessoas de classe média ou classe alta estão com funcionários em casa durante a pandemia (os colocando em risco!) e não contam pra ninguém porque "pega mal"? Elas vão continuar com essa atitude enquanto postam no Instagram que "vidas negras importam?". Crianças negras vão continuar a ser tratadas com descaso?
Esse caso deveria ser o suficiente para que o Brasil reagisse como os Estados Unidos reagem à morte de George Floyd (e aplaudimos!). Ou vamos esconder a morte de Miguel embaixo do tapete assim como fizemos com João Pedro (morto durante uma ação da polícia no Rio de Janeiro no dia 18 de maio), Agatha (assassinada com tiro de fuzil em setembro do ano passado no Rio) e tantas outras? Até quando?