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Nina Lemos

Assédio é rotina quando somos meninas de 10 anos. Tente se lembrar como era

Nina Lemos

25/08/2020 04h00

Foto: iStock

Desde a semana passada estamos tristes e chocados com o caso da menina de 10 anos que engravidou depois de ser estuprada pelo tio (e foi atacada por fazer um aborto). E, desde então, quanto mais nos voltamos para o tema, mais vemos como os casos de abusos sexuais de vulneráveis são comuns no Brasil.

Ainda mais próximo está o assédio a meninas. Isso é tão comum, mas tão comum, que já aconteceu até com a gente, com a sua irmã, e.. com a sua filha. E tem mais. Quanto mais a gente é nova, mais assediada a gente é. Chocante.

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Na sexta-feira, a psicóloga Patrícia Paula Batista de Almeida fez um post no Twitter onde dizia: 

"Eu sofri mais assédio entre os meus 10 e 18 anos do que dos 19 aos meus atuais 32 anos atuais. Eu colocava o pé na rua e vinha um motoqueiro, motorista de ônibus, de carro, transeunte, enfim, dirigir palavras indecentes a mim. Vocês, mulheres, sentem isso também?"

Quando foi o seu?

Quando essa pergunta apareceu na minha timeline não tive dúvida: claro. Teve a vez em que um conhecido dos meus pais passou a mão em mim em um bloco de carnaval quando eu tinha uns 12 anos. Teve a vez em que um passante passou a mão no meu peito na frente da minha mãe e ela saiu correndo atrás dele gritando. Entre os 12 e os 16 anos entrar em bar, por exemplo, ou ir na padaria comprar pão, eram operações complicadas. Nunca foi tão comum sair na rua e ouvir gracinhas. 

Ao ler o tuíte da Patrícia, vi que isso também não é geracional. Ela é muito mais nova que eu. Meninas do Brasil passaram e passam por isso. 

As respostas à pergunta dela também não me surpreenderam. "Não havia um dia na minha adolescência em que um homem não assobiasse. Já recebi proposta de carona na porta da escola", disse uma. "Morria de medo de entrar no mercadinho porque os homens sempre ficavam olhando", disse outra. E seguiram os relatos de mulheres de idades variadas, algumas, inclusive, pararam de usar short ou minissaia para evitar assédio. Algumas, depois dos 20, quando o assédio "acalma", voltaram a usar. Cerca de 500 mulheres responderam a Patrícia. Em comum, os relatos incluíam muito assédio na ida da escola, na porta de bares. E todas concordaram: o auge do assédio, concluímos, acontece quando temos entre 12 e 16 anos.

Eu queria muito que isso tivesse mudado e ficado lá nos anos 80, 90. Mas não. Uma das mulheres que respondeu a essa indagação disse o seguinte: "sim, também era mais assediada quando era criança. E já sinto os olhares dirigidos a minha filha de 10 anos." Pois é.

Chocados? Acho que, no caso das mulheres, a gente sente raiva e tristeza, mas não exatamente surpresa ao ler isso. 

Os homens, em geral, se assustam pois não sabem dessas nossas experiências. Há alguns anos, quando saiu a campanha primeiro assédio, e mulheres do Brasil inteiro relataram seus primeiros casos de abuso (quando crianças), um amigo me disse: "ah, agora todo mundo foi assediado, né?". Eu tive que contar para ele exemplos reais dos meus primeiros assédios para que ele acreditasse. Então, se você é homem, saiba que sim: quase todas nós, mulheres brasileiras, sofremos assédio quando éramos crianças. 

Novinhas e ninfetas

Há alguns anos eu estava em um bar no Rio de Janeiro com um amigo descolado, todo moderno. Depois de ter bebido umas, ele começou a falar coisas do tipo: "vou ficar aqui olhando as ninfetas." "Essas ninfetas me deixam louco." Ele já tinha uns 40 anos. Daquela vez, dei um ataque. Não falei mais com esse amigo, que agora deve me achar "louca". Mas paciência. Se fosse hoje, talvez meu amigo diria que queria "ver as novinhas", palavra sintomática da moda

O assédio não acontece só em casos "extremos", mas no cotidiano. Quem passa por ele é sua sobrinha, sua filha. E quem pratica, muitas vezes, é um amigo seu, ou o amigo do seu pai. E não podemos achar que isso é normal. 

Sobre a autora

Nina Lemos é jornalista e escritora, tem 46 anos e mora em Berlim. É feminista das antigas e uma das criadoras do 02 Neurônio, que lançou cinco livros e teve um site no UOL no começo de 2000. Foi colunista da Folha de S. Paulo, repórter especial da revista Tpm e blogueira do Estadão e do Yahoo. Escreveu também o romance “A Ditadura da Moda”.

Sobre o blog

Um espaço para falar sobre a vida das mulheres com mais de 40 anos, comportamento, relacionamentos, moda. E também para quebrar preconceitos, criticar e rir desse mundo louco.