"Soul breakdown": a doença dos jovenzinhos privilegiados do primeiro mundo
Nina Lemos
02/11/2017 04h00
"Eu não posso ir trabalhar hoje porque tive um soul breakdown"
O estagiário do trabalho do meu marido, um garoto alemão de 20 e poucos anos, não foi ao serviço e mandou esse email. Soul breakdown é algo que não sei direito como traduzir, já que isso não existe. Nervous break é colapso nervoso. Digamos que ele teve então um "piripaque da alma". Ou estava "doente da alma", como os jovens poetas românticos do século 19.
Talvez os hipsters não estejam copiando só a barba dos rapazes do século 19, aquelas longas e penteadas, mas também as doenças da alma. Só não sei, se, como os românticos do século retrasado, estão escrevendo poesia. Duvido um pouco, já que muito tempo no Instagram não deixa ninguém com brechas ou inspiração para escrever nada.
Contei a história no Facebook, um amigo comentou: "Não sabia nem que a gente podia ter isso". Pois é, amigos, eu, brasileira com mais de 40 anos, também não sabia.
Sabem de nada, inocentes!
Moro em Berlim, uma cidade considerada no mundo todo uma das mais modernas, na rica Alemanha. Aqui, para uma brasileira como eu, pulam na cara todas hora os "problemas de primeiro mundo", enquanto eu digo para mim mesma: "Sabem de nada, inocentes". Agora, descubro que existem também as doenças de primeiro mundo.
Semana passada, soube de um rapaz que estava de licença por duas semanas porque teve o "coração partido". Assim como o menino do soul breakdown, ele era jovem, homem, hétero e branco.
"Mas o que tem a ver?", vocês perguntam. Ora, ora! Vocês imaginam um refugiado negro dizendo que não pode limpar o chão do supermercado porque está com "problemas da alma"? O que ele ouviria? Que estava sendo fresco, perdendo essa chance maravilhosa de trabalhar na Alemanha (fazendo o trabalho que os alemães não querem fazer, claro).
E a gente, mulher? A gente se atreveria a pegar licença por coração partido? Não, porque seríamos chamadas de dramáticas e loucas, coisas das quais inclusive já somos chamadas mesmo sem faltar o trabalho. Sabemos que não podemos dar mole. Então, lá vamos nós, trabalhar com maquiagem para esconder as lágrimas (quem nunca?).
E um gay, então? Ele que não ouse! Senão, seria chamado de maricas (como se já não fosse pelos machos na hora do almoço).
O privilégio, me dei conta, existe até na hora das dores da alma e de faltar no trabalho.
TPM x Soul breakdown
Trabalhamos todos os meses com cólica. Se estamos de mau humor, ouvimos que estamos com TPM. E, ei, às vezes estamos mesmo! É físico, nossos hormônios ficam loucos e realmente nos deixam chorosas ou com com ódio do mundo. Mas lá vamos nós, trabalhar morrendo de cólicas e tontas de tanto Postam. Não mandamos email para o chefe falando que estamos com hormônio breakdown.
E sim, eu acho que deveríamos ter licença médica nos dias de cólica! Só que não fazemos isso. Vai que usam isso como outra desculpa para que a gente ganhe menos? Menopausa, cólica, volta ao trabalho amamentando, lá vamos nós, segurando o choro (porque chorar no trabalho pega mal, vão falar que somos loucas, dramáticas, vocês sabem).
"Você está sendo maldosa e diabólica de rir desse menino!", me diz uma alemã alimentada com o leite A da existência. Talvez eu seja. Talvez eu tenha é inveja de quem pode não trabalhar por ter piripaque da alma. Mas eu que não tenha um surto de inveja breakdown. Afinal, eu preciso provar que ainda sou boa mesmo com mais de 45 anos, que não passei do ponto. Que ainda estou ligada e tenho energia. Senão, vocês já sabem: perco a chance. E que depois eu não reclame que isso me fez ter um soul breakdown.
Antes que me perguntem: acredito, sim em um mundo humanizado, em que as dores da alma sejam levadas em conta no trabalho. Mas enquanto isso não for para todos, desculpem, mas vou continuar rindo, aquilo que nós, os ferrados do terceiro mundo, descobrimos ser o melhor remédio para qualquer soul breakdown.
PS.: Depressão, ansiedade e outras coisas da alma são doenças sérias! Não estou falando que ninguém deve trabalhar doente. Tenho Síndrome do Pânico e já trabalhei várias vezes tendo crises. Também já tirei licença de alguns dias quando a coisa estava feia. Aconselho quem sofre disso a procurar um médico e, se ele falar para não trabalhar, não ir. E sem ter crise de culpa breakdown!
(Ilustração: Getty Images)
Sobre a autora
Nina Lemos é jornalista e escritora, tem 46 anos e mora em Berlim. É feminista das antigas e uma das criadoras do 02 Neurônio, que lançou cinco livros e teve um site no UOL no começo de 2000. Foi colunista da Folha de S. Paulo, repórter especial da revista Tpm e blogueira do Estadão e do Yahoo. Escreveu também o romance “A Ditadura da Moda”.
Sobre o blog
Um espaço para falar sobre a vida das mulheres com mais de 40 anos, comportamento, relacionamentos, moda. E também para quebrar preconceitos, criticar e rir desse mundo louco.