"Eu também podia ter engravidado aos 10", diz mulher abusada na infância
Nina Lemos
19/08/2020 04h00
Getty Images/iStockphoto
Nos últimos dias, está difícil não pensar com tristeza e choque no caso da menina de dez anos que, depois de ser abusada por quatro anos pelo tio, engravidou e fez um aborto (e ainda foi chamada de assassina por fanáticos). A história dela parece um pesadelo. Mas o pior de tudo é que é real e está, infelizmente, perto da gente. Mais do que a gente imagina.
Você conhece alguma mulher que foi abusada quando era criança? Talvez você diga que não. Mas provavelmente conhece, sim (e só não sabe, já que esse é um assunto para lá de íntimo. Algumas mulheres passam toda a vida sem conseguir falar do assunto).
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Abuso infantil é uma espécie de pandemia no Brasil. Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, o Brasil teve o registro de 66 mil vítimas de estupro ano passado. A maioria, crianças. Sim, 53,8% eram meninas de até 13 anos. Ou seja, a cada uma hora, quatro meninas são estupradas. Sim. É chocante. Eu mesma conheço três mulheres que sofreram abuso.
Ontem, enquanto comentava o caso da criança do Espírito Santo em uma rede social, o número subiu. Foi a vez da querida Lidiane Andrade, agente de telemarketing, de 36 anos, me contar que já tinha sido abusada.
"Fui estuprada dos 6 aos 10 anos por um vizinho. Ainda bem que demorei para ficar menstruada, senão eu poderia ter engravidado ainda criança", contou. Lidiane hoje é mãe dedicada de três meninos e, obviamente, carrega traumas. Ela, assim como outras mulheres abusadas, revive o pesadelo agora quando leem sobre o caso da menina do Espírito Santo.
Lidiane hoje faz terapia e consegue falar do assunto. Inclusive, faz questão de falar, porque, como mulher e mãe, sabe que falar disso é importante.
Relato forte
Atenção, o relato é forte. Lidiane conta que, entre os seis e os dez anos, sofreu abusos variados por parte de um vizinho. Quando tinha por volta dos 10 anos, esse mesmo sujeito chamou adolescentes da rua para terem relações sexuais com ela.
Lidiane, na época, não entendia que sofria abuso. Claro, afinal, ela era uma criança!
"Eu não lembro muita coisa, mas eu lembro que em 1996 minha família mudou de bairro. Eu já tinha 12 anos. E acho que foi só então que os estupros pararam. Em 1997 eu tive minha primeira menstruação. E hoje eu penso que eu tive "sorte" de ter meu ciclo menstrual iniciado mais tarde, porque eu poderia ter sido uma dessas crianças estupradas que engravidam na infância."
Ela só foi entender realmente o horror pelo qual tinha passado quando foi mãe. "Eu tive meu primeiro filho em 2004 e só em 2007, quando engravidei pela segunda vez é que fui entender que tudo o que tinha acontecido não era culpa minha, que eu havia sido vítima."
No caso da garota que engravidou aos dez anos, seu tio foi preso. No caso de Lidiane, seu agressor continua impune. "Eu cresci e não posso acusar o meu estuprador. Eu não tenho provas. Só a minha palavra contra a dele, sei que é um "homem de bem", toca saxofone na banda da igreja. É pai de família. Tem 3 filhas."
Hoje, ela consegue fazer esse relato, mas não sem lágrimas. "Só depois dos 30 anos consegui falar disso com meus amigos. Falo, mas nunca é numa boa. Nunca é sem chorar. Nunca é sem doer, sem reviver. Todos os dias em que eu me lembro disso é como se eu revivesse, assistindo do alto a Lidiane criança ser abusada. A cada criança abusada que se torna notícia, tudo isso volta como um tsunami."
A terapia ajuda mas, claro, essa é uma ferida que não se cura.
"Hoje em dia eu faço terapia num programa da USP e, mesmo assim, pouco consigo falar disso. É como se eu preferisse manter guardado naquele canto escuro da memória. Minha última sessão coincidiu com a notícia da menina de dez anos estuprada e grávida e eu não consegui não sentir por ela, e por mim. E eu fico pensando que, se não for a gente mesmo a vítima de um crime desses, com certeza conhece alguém que já passou por isso, mesmo que nunca te falem."
Sim, você deve conhecer alguma mulher que já passou por esse horror. E isso precisa, urgentemente, parar de ser algo tão comum.
Sobre a autora
Nina Lemos é jornalista e escritora, tem 46 anos e mora em Berlim. É feminista das antigas e uma das criadoras do 02 Neurônio, que lançou cinco livros e teve um site no UOL no começo de 2000. Foi colunista da Folha de S. Paulo, repórter especial da revista Tpm e blogueira do Estadão e do Yahoo. Escreveu também o romance “A Ditadura da Moda”.
Sobre o blog
Um espaço para falar sobre a vida das mulheres com mais de 40 anos, comportamento, relacionamentos, moda. E também para quebrar preconceitos, criticar e rir desse mundo louco.