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Nina Lemos

Polanski: é possível separar a obra e o abusador? Francesas gritam que não

Nina Lemos

03/03/2020 04h00

 

"Viva a pedofilia! Viva a pedofilia". Com os punhos cerrados Adéle Haenel, uma das principais atrizes francesas, deixou na noite de sexta-feira (28/2) a premiação do prêmio Cesar, considerado o Oscar francês, assim que o cineasta Roman Polanski (que não foi ao evento porque disse que poderia ser "linchado") ganhou seu primeiro troféu da noite. Assim feito ela, várias outras atrizes fizeram o mesmo. Motivo: Polanski concorria a doze prêmios naquela noite por seu filme J'Accuse – O Oficial e o Espião. Do lado de fora de onde acontecia a cerimônia, a polícia jogava bomba de gás para dispersar manifestantes feministas. 

A confusão não foi causada por motivo torpe ou "mimimi". Roman Polanski,  de 86 anos, um dos grandes premiados da noite,  foi condenado e admitiu ter estuprado uma menina de 13 anos nos anos 70 nos Estados Unidos (país de onde fugiu e onde nunca mais pisou) e recebeu outras acusações recentemente, na esteira do #MeToo. 

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Em 2010, a atriz  atriz britânica Charlotte Lewis acusou o cineasta de ter "abusado sexualmente" dela quando tinha apenas 16 anos. Em agosto de 2017, outra mulher, que preferiu não se identificar, disse que foi agredida sexualmente por Polanski em 1973.  Um mês depois, foi a vez da atriz Regina Langer registrar queixa contra o cineasta, o acusando de tê-la estuprado quando tinha 15 anos. Em 2019, foi a vez da atriz francesa Valentine Monnier denunciar que foi espancada e estuprada pelo diretor quando ela tinha 18 anos. Ele foi inocentado porque os crimes prescreveram. 

Atenção: não são boatos ou fofocas. São denúncias sérias e uma condenação com confissão!

Sim, ele é um gênio. Mas…

Ah, mas o Polanski é um gênio! Sim, ele é, claro que é. Acho que disso ninguém tem dúvidas (nem as atrizes e escritoras francesas que se levantam contra ele). Ele é o diretor de uma obra incrível, que inclui filmes como "Chinatown", "O Inquilino", "O Bebê de Rosemary e "O Pianista".  Agora, o caso abre muitas questões para debate.

Um gênio deve ser condecorado mesmo sendo um estuprador? A gente pode separar a pessoa da arte (no caso, um acusado de estupro de várias menores de idade) e continuar premiando o diretor como se o gênio e o acusado de estupro fossem pessoas diferentes? 

Uma amiga, Marcia Bechara, jornalista da RFI (Radio France Internacionale), com sede em Paris, me ofereceu um ponto de vista interessante. A atriz e comediante Blanche Gardin respondeu a esse questionamento com a seguinte resposta:

"É interessante, dizem que é preciso separar o homem do artista. Mas, por mais bizarro que isso possa parecer, a indulgência só vale para os artistas, Ninguém diz do padeiro: "olha, ele estupra uma garotada ali atrás do forno, mas, no entanto, é preciso separar o padeiro do homem, porque ele faz uma baguete ex-tra-or-di-ná-ria." 

Faz pensar, não? Seriam os artistas seres dotados de carta branca para cometer atrocidades contra mulheres?

As francesas, que continuam debatendo a premiação e veêm o caso como um divisor de águas, (os membros da Academia Francesa de Cinema pediram demissão antes da premiação) insistem que não.

Hoje, em artigo no jornal  Libération, a escritora Virginie Despentes, autora de livros como "Teoria King Kong" e de "A vida de "Vernon Subtext" escreveu :"Você sabe muito bem o que faz quando defende Polanski: exige que ele seja admirado mesmo em sua delinqüência." Ela disse ainda: "que se o estuprador for um faxineiro, há uma condenação geral. "Mas se o estuprador é poderoso, ele recebe respeito e solidariedade. 

Cancelado?

Ah, então o Polanski foi "cancelado" e não podemos ver mais nenhum de seus filmes? Temos que desgostar todos os que já vimos? 

 Primeiro, o caso aqui não é um "cancelamento" (essa atitude tão na moda, que consiste em gritar "cancelado" para alguém que fez algo que nos desagrada). Trata-se de algo mais sério. De alguém acusado, condenado e que confessou um estupro.  Cada caso é um caso. E, no caso de Polanski, o caso é seríssimo.

Quanto à obra, pessoalmente, não vou deixar de ver seus filmes ou de achar que ele é um grande cineasta.

É possível não passar pano (como vários homens fazem, falando que, "olha, não é bem assim, coitado, ele está sendo "linchado") e, ao mesmo tempo, não jogar a obra na fogueira? É difícil. Mas, modestamente, acho que sim.

Um amigo teve uma ideia  interessante. "Todos os filmes de abusadores deviam ser exibidos para sempre com um aviso no começo, explicando: esse cara foi condenado/é acusado disso e daquilo. Isso faria com que a obra não fosse queimada – o que não pode acontecer – mas também com que os atos do artista não fossem esquecidos para não serem repetidos". Parece uma boa alternativa, por mais maluca que seja. 

Esquecer que o cara é um gênio? Esquecer filmes como "O Pianista" e desencorajar as novas gerações a apreciá-las? Não! Mas também não podemos esquecer que ele é acusado de ter cometido crimes horríveis contra crianças! Não esquecer, nem as obras, nem os crimes, parece ser um bom caminho. 

 

 

Sobre a autora

Nina Lemos é jornalista e escritora, tem 46 anos e mora em Berlim. É feminista das antigas e uma das criadoras do 02 Neurônio, que lançou cinco livros e teve um site no UOL no começo de 2000. Foi colunista da Folha de S. Paulo, repórter especial da revista Tpm e blogueira do Estadão e do Yahoo. Escreveu também o romance “A Ditadura da Moda”.

Sobre o blog

Um espaço para falar sobre a vida das mulheres com mais de 40 anos, comportamento, relacionamentos, moda. E também para quebrar preconceitos, criticar e rir desse mundo louco.