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Nina Lemos

Black Face, moletom com forca: o que acontece no mundo da moda?

Nina Lemos

22/02/2019 04h00

O que acontece no planeta da moda? Ele está fora de órbita? Em menos de um mês, duas das marcas mais importantes do mundo se envolveram em, digamos, "polemicas"(ou bizarrices).

No início do mês, a Gucci lançou uma suéter estilo "black face". Sim, você está lendo certo e pode ver a "criação" na foto abaixo. Alguns dias depois, foi a vez de Kate Perry lançar um sapato polêmico por sua grife, que também foi acusada de ser racista.

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Essa semana, foi a vez da Burberry se envolver em polêmica ao colocar na passarela moletons com um detalhe que parece uma forca.

E, claro, jamais esqueceremos: também em fevereiro, o Brasil esteve no centro da polêmica fashion mundial, quando a editora de moda da Vogue, Donata Meirelles, fez uma festa de aniversário com decoração que remetia ao Brasil colonial e posou, linda, loira e de Valentino, cercada por mulheres negras vestidas de branco.

O suéter da Gucci, que seria vendido por cerca de 700 euros (R$ 3,5 mil) talvez seja um dos erros mais escandalosos. Basicamente, o suéter tem uma gola até o meio da cara, mas com uma boca desenhada. Ou seja, você, branco, pode se "vestir de negro". No editorial que mostra o lançamento, reparem, claro, a modelo é branca.

"Black face", para quem não sabe, foi uma prática no mundo do teatro no século XIX, quando atores brancos simplesmente se pintavam de preto para representar negros, de forma exagerada, cômica, literalmente, rindo da cara deles. Uma prática para lá de ofensiva e uma memória triste e séria do racismo, que só acabou nos anos 60, depois de muita briga do movimento negro.

 

As pessoas podem fazer revival de "black face" em paz? Claro que não! Exemplo é a reação ao tal suéter da Gucci. O rapper 50 cents gravou um video queimando uma camiseta Gucci e disse que jamais usaria a marca de novo. Spike Lee fez coro. E também declarou que agora boicota a marca.

Sério. O que eles esperavam?

Suicídio não é fashion

Nem deu tempo do assunto ser debatido, porque lá veio a Burberry, acusada essa semana de colocar na passarela moletons com detalhe de forca . Obviamente o caso virou um escândalo. Tem gente falando em boicotar a marca e a hashtag: suicídio não é fashion foi lançada imediatamente. Segundo a marca, a idéia não era fazer forcas, mas acessórios marítimos. Acredito. Mas pegou mal. Fim.

Calma que não para por aí. Também em fevereiro, a marca da cantora Katy Perry lançou uma sandália que, segundo os críticos, remete a "black face". No começo, quando vi a imagem, fiquei em dúvida, será que a sandália não seria apenas feia? Mas fiz o que faço nesses casos. Perguntei para uma amiga negra (gracias, Claudia Lima!). Segundo ela, isso soa, sim, como alusão a "black face".

O que acontece com essa gente? Eles nao têm gigantescos departamentos de marketing? Não trabalham com consultores bem pagos que poderiam olhar para essas idéias "gênias" e falar: "epa!". E, claro, pergunta básica, eles não têm pessoas negras trabalhando em suas equipes que poderiam olhar os absurdos e dar um toque de que magoa? Existem mulheres gordas trabalhando em grifes e revistas de moda? Se o ambiente fosse diverso (e não estamos falando de negras servindo cafezinho, mas em cargos de comando e criatividade) será que esse tipo de coisa aconteceria?

E, no caso da forca, não tem uma pessoa por perto que tenha perdido um amigo para o suicídio? Eles não se lembram por exemplo que o gênio Alexander MacQueen se matou enforcado dentro do seu armário? Não pensaram que, mesmo se não fosse a intenção, poderia confundir?

Falta de contato com a realidade

Opinião de quem cobriu moda por anos e anos e ama o assunto:

Muitas pessoas da moda (não são todas, de jeito nenhum! Ei, Dudu Bertholini, ei, Ronaldo Fraga!) costumam se achar acima do bem e do mal. Elas se acham poderosas. Tem acessos a roupas de luxo, sentam em primeiras filas de desfiles ao lado de celebridades, são temidas por muitas pessoas. Então, como reis e rainhas déspotas, acham que podem fazer o que bem entendem.

Outra hipótese. Muitas delas (definitivamente não são todas, existem, sim, estilistas engajados e preocupados com questões sociais. Amém, Viviene Westwood!) vivem tão imersas dentro do mundinho que perdem contato com o mundo exterior. Eles estão cercados por pessoas iguais, falando as mesmas gírias, gritando um para o outro que eles "arrasam" e, aí, dá nisso.

Em todos os casos citados, as empresas, tiveram que colocar em ação planos de contenção de tragédias. Pessoas foram demitidas, e as empresas se comprometeram a criar comitês para tratar do assunto diversidade. Pediram, desculpa, tiraram as peças de venda e prometeram "não fazer isso de novo." Também disseram que não era a intenção."

Acredito que não seja intencional mesmo. Afinal, ninguém rasga dinheiro. Acho que é mais descaso e ignorância (que, como diz o provérbio, é vizinha da maldade).

Sim, eles têm que gastar uma nota, fazer um esforço gigante, chamar pessoas de fora, para que se tenha… bom senso! Literalmente, essas marcas têm que comprar bom senso porque elas mesmo não tem!

Não estou falando que todo mundo é perfeito. Quando faço meu trabalho, por exemplo, às vezes tenho duvidas do estilo: "estou pegando pesado? Posso estar agredindo alguém". O que faço, no caso? Peço opinião da minha editora, de amigos. Muitas vezes eles me alertam. Concordo. Mudo. É simples assim.

Vendo a falta de sensibilidade galopante no mundo da moda, a pergunta que vem é: "eles não têm amigos?" Bem, talvez tenham. Mas amigos que vivem no mesmo mundo que eles.

Sandália "escravo"

Essas não são as primeiras nem serão as ultimas pisadas na bola no mundo da moda quando o assunto é racismo, diversidade, respeito. Não precisamos nem ir muito longe.

Em 2016, a Dolce & Gabana lançou a sandália "slave". Sim, tradução literal: "sandália escravo!"

E a Prada, aquela linda marca que o diabo veste, lançou uma bolsa com estampa de macaco em dezembro que também foi acusada de racismo.

Todas elas estão agora tentando correr atrás do prejuízo, pedindo desculpas, montando comitês, fazendo contato com a comunidade negra. Podia ser tão mais simples… Elas podiam apenas pensar: "isso pode machucar as pessoas?". E, no caso, desistir.

Mas nada nesse mundo é simples. E um exemplo disso é ele mesmo, o gênio Karl Lagerfed, que morreu essa semana e é uma perda imensa. Sim, ele era um artista genial. Mas Karl já chamou Adele de gorda, já disse que o #MeToo era uma frescura e que muitos modelos só entravam no mundo da moda para dar golpe. Pois é…

É complexo e até os gênios erram. Mas esse é um momento em que coisas assim não passam mais batido (ainda bem). O mundo, segundo muitos, ficou chato. Não se pode mais desrespeitar etnias, doenças como depressão, mulheres, ou ser gordofóbico em paz. As comunidades cobram. Boicotam. Vivemos um momento em que muitas coisas estão vindo à tona. Racismo disfarçado e machismo não estão mais passando batido, o que, repito, é otimo.

Fica a pergunta: quantos milhões de euros as empresas de moda vão ter que gastar (e perder) para entender isso? O mundo mudou, queridos. Ou vocês acordam, ou não vai ter vestido lindo que dê jeito.

Sobre a autora

Nina Lemos é jornalista e escritora, tem 46 anos e mora em Berlim. É feminista das antigas e uma das criadoras do 02 Neurônio, que lançou cinco livros e teve um site no UOL no começo de 2000. Foi colunista da Folha de S. Paulo, repórter especial da revista Tpm e blogueira do Estadão e do Yahoo. Escreveu também o romance “A Ditadura da Moda”.

Sobre o blog

Um espaço para falar sobre a vida das mulheres com mais de 40 anos, comportamento, relacionamentos, moda. E também para quebrar preconceitos, criticar e rir desse mundo louco.