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Nina Lemos

Festejar a ditadura: porque algo assim seria proibido na Alemanha

Nina Lemos

27/03/2019 04h00

(Foto: APF)

Ano passado, uma senhora de 89 anos foi condenada a dois anos de prisão na Alemanha. Ursula Haverbech, conhecida como vovó nazi, é uma famosa representante do "revisionismo", um movimento de pessoas que insiste que o holocausto não existiu.

Ela já publicou vários textos sobre isso. Em um deles, diz que Auschwitz não era um campo de concentração, mas um campo de trabalho. Só que negar a existência do genocídio é crime, a pena é de até cinco anos de cadeia.

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Na Alemanha (e em diversos países, como Áustria e Holanda), negar que o holocausto existiu é crime. Está na constituição (que na maioria das vezes é cumprida). É claro que "comemorar" o holocausto seria impensável. Quer dizer, tem quem comemore, infelizmente. Mas se você fizer isso em público, está cometendo um crime e provavelmente vai ser preso.

Sim, existem neo nazistas na Alemanha. Mas se eles saírem por aí exibindo suásticas ou fazendo saudação de "heil Hitler", provavelmente vão ser presos.

Em 2017, ficou famoso o caso de dois turistas chineses que decidiram fazer uma "brincadeira" em Berlim e encenaram um "Heil Hitler" na capital alemã. Eles foram presos.

Por que lembro essas histórias e recorro à lei do país onde vivo (e tem esse passado terrível) nesse momento? Porque, em 2019, estamos diante disso: o governo declarou que vai comemorar no dia 31 de março o golpe militar de 64, que deu início a uma ditadura sangrenta que durou 21 anos. O porta voz da presidência disse na Rede Globo que o presidente não acredita que o Brasil viveu um golpe militar. Isso mesmo. E, no Twitter, a deputada federal Joice Hasselman escreveu: " A partir desse ano o Brasil irá comemorar o aniversário de 1964. É a retomada da narrativa verdadeira da nossa história. Orgulho".

Retomada da narrativa verdadeira? Deixar a tortura e o sangue de lado seria como, guardadas as devidas proporções, recontar a história do holocausto. Afinal, quantos crimes foram cometidos na ditadura? A ONU já afirmou inclusive, que a ditadura brasileira praticou crimes "contra a humanidade".

Tortura nunca mais

Tortura, no Brasil, é crime. "Hoje em dia, a tortura é equiparada a crime hediondo", explica o advogado Iberê Bandeira de Mello. Apologia à ditadura, ele explica, não é crime. "Ainda não existe um reconhecimento legal de que esse período foi uma ditadura", ele explica.

Mas, enfim, assassinato também é crime, todos sabemos. Então, para quem não estudou isso na escola, alguns números: pelo menos 434 pessoas foram mortas pelo Estado durante a ditadura. Dessas, 202 continuam desaparecidas, segundo dados da Comissão da Verdade. Essa é a história. Ela é cheia de requintes de crueldade.

Como recontar uma história dessas negando esses crimes? E como assim, a ditadura não existiu? Eu era criança. Eu vi. Pais de amigos meus foram perseguidos e assassinados. Aconteceu. Centenas de pessoas foram torturadas. Alguns dos que morreram, morreram na tortura, segundo relatórios da Comissão da Verdade.

Quando trabalhava na revista Tpm, fiz uma reportagem com mulheres que lutaram contra o governo militar. Eram senhoras que guardavam até hoje as terríveis marcas das torturas. Algumas foram torturadas na frente dos filhos. Mulheres que nunca se recuperaram do trauma, algumas carregam marcas físicas para sempre.

A lição do primeiro mundo

Voltando à comparação com a Alemanha, usar uma camiseta com os dizeres "Ustra Vive" seria o mesmo que usar a camiseta de um oficial nazista. Seria proibido. A pessoa seria presa.

A Alemanha é um país com grandes defeitos, como todos, mas sobre lidar com seu passado horrível, eles dão exemplo. Em todo lugar que andamos, estão ali as marcas do nazismo, os furos de bala, pedras no chão com nomes de judeus mortos. Isso é para que todos se lembrem e para que o horror não se repita. Essa é a cultura do "lembrar para não repetir".

Ah, mas existe liberdade de expressão. Claro, e essa é uma das grandes discussões na Alemanha. A liberdade de expressão existe e precisa ser assegurada, mas, segundo o governo, ela "não inclui negar o holocausto e fazer apologia ao nazismo e a crimes de ódio".

Está na constituição que é proibido usar símbolos ou fazer gestos de organizações inconstitucionais, como as nazistas

A apologia à violência e à tortura também é proibida (até em videogames). Escrito na constituição: "proibida a divulgação de atos cruéis ou desumanos que expressem glorificação da violência ou que prejudiquem a dignidade humana".

Detalhe: na maioria das vezes, a lei é cumprida. Quando não é, vira um escândalo. Ano passado, na cidade de Chemnitz, aconteceram terríveis manifestações fascistas. Imigrantes foram espancados e tinha, sim, neonazista usando nome de nazi na camiseta ou usando bigodinho do Hitler. Até hoje, o evento está na mídia quase todos os dias.

A lei dura, as lembranças do horror presentes o tempo todo podem não ter acabado com o problema, mas, por enquanto, mantém o ódio pelo menos sob controle. Poderia servir de exemplo para o Brasil. Quem sabe um dia…

Sobre a autora

Nina Lemos é jornalista e escritora, tem 46 anos e mora em Berlim. É feminista das antigas e uma das criadoras do 02 Neurônio, que lançou cinco livros e teve um site no UOL no começo de 2000. Foi colunista da Folha de S. Paulo, repórter especial da revista Tpm e blogueira do Estadão e do Yahoo. Escreveu também o romance “A Ditadura da Moda”.

Sobre o blog

Um espaço para falar sobre a vida das mulheres com mais de 40 anos, comportamento, relacionamentos, moda. E também para quebrar preconceitos, criticar e rir desse mundo louco.