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Nina Lemos

Manifestantes "pró-vida" aproximam Brasil da Arábia Saudita

Nina Lemos

18/08/2020 04h00

Grupo católico faz ato em hospital de PE contra aborto de menina estuprada. (Reprodução Internet)

"O Brasil está virando a Arábia Saudita", essa frase tem sido repetida por mim e por muitos quando vemos os retrocessos que acontecem no país quando o assunto é direito das mulheres. Ontem, esse sentimento voltou.

Motivo: uma menina de dez anos que foi estuprada por anos por um tio, teve que cumprir uma epopéia para realizar um aborto. Detalhe importante, o aborto em caso de estupro e risco de vida da mulher é garantido por lei no Brasil graças a um decreto de 1940. Sim, há 80 anos. Estamos regredindo nesse tanto.

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Lembramos da Arábia Saudita porque é um dos piores países do mundo para ser mulher. Lá, meninas depois que menstruam passam a só poder andar cobertas, mulheres podem ser presas se usarem roupas "indecentes" e para quase tudo precisam de autorização de um "tutor" homem – só recentemente, por exemplo, conquistaram o direito de dirigir. Só que, pasmem, o aborto é legalizado no país. Lá, a mulher pode fazer aborto se sua saúde psicológica ou física estiver em risco, com autorização do marido.

Mas a Arábia Saudita é também o país onde existem casos de mulheres que foram estupradas e condenadas pelo ato de que foram vítimas. Não é isso que estamos vendo, de alguma maneira?

No caso da menina do Espírito Santo, o direito foi garantido pelos seus avós. Depois de muita luta ela conseguiu realizar o procedimento. Mas, teve que ir para outro estado. E, chegando lá, foi chamada de assassina por manifestantes "pró-vida" que tentaram, entre outras coisas, invadir o hospital.

Pró-vida ou pró-morte?

"Pró-vida" é o nome dado por movimentos contra o aborto ao redor do mundo. No caso de pessoas que vão a um hospital tentar impedir que uma menina de dez anos que foi estuprada por anos, não é possível que essas pessoas ainda pensem que defendem a vida.

Segundo relatos, a menina (que teve seus dados vazados na internet, o que é crime) e sua família estão sofrendo ameaças. E a garota teria crises nervosas cada vez que falava da gravidez. 

Segundo médicos, é claro, uma menina de dez anos não tem o corpo formado para ser mãe. Ou seja, esses manifestantes precisam assumir logo que são pró-morte, inclusive porque também ameaçaram médicos e profissionais de saúde na porta de um hospital.

Quem persegue e ameaça a família de uma criança em um momento traumático desses não protege a vida, desculpem. 

A menina era estuprada desde os seis anos de idade. Quem defende a vida deveria estar preocupado em dar acolhimento e prover ajuda psicológica para ela e à sua família, não em perturbar ainda mais uma criança vítima de uma monstruosidade como é o estupro, ainda mais o estupro de menor de idade.

Dói muito ver uma criança passando por isso. Nós, mulheres, sofremos em dobro porque, ei, nós já fomos meninas de dez anos. Com essa idade, a maioria de nós brincava de queimada na rua, andava de bicicleta com as amigas… Éramos crianças. Como todas as meninas deveriam poder ser. Sim, o aborto a que ela tem direito por lei foi feito e a menina passa bem. Mas, claro, terá traumas enormes para superar, inclusive o fato de ser chamada de assassina por pessoas que dizem defender a vida…

Sobre a autora

Nina Lemos é jornalista e escritora, tem 46 anos e mora em Berlim. É feminista das antigas e uma das criadoras do 02 Neurônio, que lançou cinco livros e teve um site no UOL no começo de 2000. Foi colunista da Folha de S. Paulo, repórter especial da revista Tpm e blogueira do Estadão e do Yahoo. Escreveu também o romance “A Ditadura da Moda”.

Sobre o blog

Um espaço para falar sobre a vida das mulheres com mais de 40 anos, comportamento, relacionamentos, moda. E também para quebrar preconceitos, criticar e rir desse mundo louco.