Clipe de Caetano e Daniela é grito libertário contra as trevas
Nina Lemos
08/02/2019 04h00
Essa semana, um deputado apresentou um projeto de lei em Brasília para proibir a pílula do dia seguinte. Sim, parece piada (de mau gosto, assim como muitas outras que temos ouvido esses tempos). No início de janeiro, a Ministra dos Direitos Humanos, Damares Alves, tomou posse anunciando um "novo tempo": "agora é assim: meninas vestem rosa! Meninos vestem azul!", a frase correu o mundo.
Comentário geral: o Brasil estaria virando um país fundamentalista maluco, onde pessoas sugerem que crianças holandesas aprendem a fazer sexo na escola (outra cortesia da Ministra Damares).
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Mas ainda temos salvação. Tem quem diga não ao retrocesso. E o grito mais alto até agora, pelo menos nas artes, acaba de ser dado. Autores: Daniela Mercury e Caetano Veloso, que lançaram na terça-feira o clipe "Proibiram o Carnaval" uma espécie de manifesto carnavalesco contra a censura e todo cerceamento das liberdades individuais. De cara, essa já pode ser considerada a primeira canção protesto contra essa tentativa de volta as trevas da era de Bolsonaro e Damares.
"Minha alma não tem caixinha, minha alma não tem tampinha, minha alma só tem asinha", cantam os dois, envoltos em tule rosa e azul. Caetano, de gravata rosa, avisa: "tô no meio da rua, tô louca". E aparece nu em uma banheira coberto apenas por bolas rosas (cor de menina, lembram?), enquanto Daniela está numa banheira com bolas azul. "Libera a libido, vai de rosa ou vai de azul?", provocam os dois. E continuam: "abre a porta desse armário que não tem censura para me segurar".
O hit é certo e a mensagem é clara: "não vão nos parar, não vamos aceitar, não vamos voltar para o armário, continuaremos acreditando na diversidade."
Faz todo sentido que esse grito seja dado por Daniela, ela mesma parte de uma família que muitos dos que falam da "tal família brasileira" acham uma ofensa. Ela é casada com a jornalista Malu Viçosa, mãe de cinco filhos e avó de duas netas. Sim, uma tradicional família brasileira, gostem ou não.
E, claro, quem poderia fazer isso com Daniela além de Caetano, aquele que cantou é Proibido Proibir em 68, que foi preso durante a Ditadura Militar e teve o desplante de lançar um movimento chamado Tropicália em plena repressão?
Alma não tem idade
Caetano, aos 76 anos, prova que a alma, além de não ter caixinha, também não tem idade. Quem não quer estar com quase 80 livre e cantando, dançando e debochando como ele? Daniela, aos 53, também chuta todos os preconceitos, inclusive o etarismo, e aparece de short curto, meia arrastão, poderosa. Nada, nada do que seja "do figurino" de uma avó.
Em entrevista ao Universa essa semana, Daniela diz não temer os retrocessos: "sempre vou achar uma brecha." A trilha sonora para ter coragem já está aí…
PS: Em um momento de pudor, ou muito provavelmente, de medo da censura do Facebook e do Instagram (que tem como política censurar mamilos de mulheres) Daniela aparece na banheira com um seio de fantasia escondendo seus peitos de verdade. A gente até entende. Mas… em um clipe contra censura, ficou estranho. Libera os mamilos, pô!
Sobre a autora
Nina Lemos é jornalista e escritora, tem 46 anos e mora em Berlim. É feminista das antigas e uma das criadoras do 02 Neurônio, que lançou cinco livros e teve um site no UOL no começo de 2000. Foi colunista da Folha de S. Paulo, repórter especial da revista Tpm e blogueira do Estadão e do Yahoo. Escreveu também o romance “A Ditadura da Moda”.
Sobre o blog
Um espaço para falar sobre a vida das mulheres com mais de 40 anos, comportamento, relacionamentos, moda. E também para quebrar preconceitos, criticar e rir desse mundo louco.