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Weinstein usa "busca pelo sucesso" para justificar abusos. Até quando?

Nina Lemos

08/01/2020 04h00

Getty Images

"Fui consumido pelo meu trabalho, minha empresa, por minha busca por sucesso. Isso me fez descuidar da minha família, minhas relações, e atacar as pessoas ao meu redor."

A frase foi dita pelo ex-mega produtor de Hollywood Harvey Weinstein em entrevista ao canal CNN no sábado. O produtor, acusado de estupro e assédio por dezenas de mulheres, deu essa declaração dias antes de seu julgamento começar, em Nova York. Sim, ele sentou nos bancos dos réus na segunda-feira (finalmente!), em um julgamento que deve durar semanas e é histórico para a luta das mulheres. Afinal, as acusações contra o produtor criaram movimentos como o "MeToo" e o "Times Up" e fez com que mulheres tivessem coragem de falar contra abuso no mundo todo.

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Harvey vem sendo acusado desde 2017. Entre as acusadoras, há atrizes famosas, como Salma Hayek , Gwyneth Paltrow e Rosanna Arquette. Salma, em um texto chocante escrito em 2017, se referiu ao produtor como seu "monstro particular." Harvey, segundo testemunhos das suas vítimas, assediava sexualmente, estuprava e chantageava. Quem não aceitasse seus avanços e ataques seria colocado na geladeira. Teria a carreira arruinada, ou, em casos como o relatado por Selma, seria ameaçado de morte por não "abir a porta para ele", "ficar nua para ele", "deixar que ele fizesse uma massagem", entre outros abusos que a atriz detalhou em 2017 em artigo no New York Times.

São mais de 80 testemunhos contra Harvey. Como muitos já prescreveram (ele é acusado de agir de maneira criminosa em Hollywood por mais de 30 anos), ele está sendo julgado apenas por crimes que teriam sido cometidos contra duas pessoas. Em um, ele é acusado de entrar no quarto e estuprar a mulher. No outro caso, de ter forçado sexo oral em uma mulher que teria entrado no quarto dele.

Culpada por entrar em um quarto?

Toda a história serve para a gente entender melhor como são as acusações de estupro. No caso, detalhes como "ele entrou no quarto" ou "a mulher foi até o seu quarto" fazem diferença, embora não devesse ser assim.

A gente não diz que alguém é culpado por levar um tiro na cara por abrir a porta, certo? E nem deveria! Mas, no caso de estupro, tudo pode fazer a culpa cair sobre a vítima. Por isso, no caso de estupro ou assédio, mulheres têm que explicar por que foram até o quarto de homens. Como se, ao entrar em um quarto onde dentro há um homem, já esteja implícito o risco de ser estuprada…

A advogada de Harvey, que, pasmem, é uma mulher, já declarou que: "mulheres que não querem sexo não devem ir a quarto de homens." Então, pessoas que foram assaltadas na rua não podem reclamar porque… foram à rua!

Todas as histórias sobre Harvey são escabrosas. A promotoria o define como "predador violento". Mas, como disse ele na frase que abre esse texto, ele estava "consumido pelo trabalho." 

No caso, a metáfora do assaltante serve de novo. Imagina se alguém assalta um banco e tenta justificar dizendo: "eu estava consumido pela minha busca de sucesso." Colaria? Não, claro! 

Mas Harvey e sua defesa parecem querer colocá-lo no lugar do "pobre homem que ficou loucão por ambição, que fez coisas horríveis porque, escuta, ele trabalhava muito, estava estressado." 

O homem que "oh coitado, não consegue segurar suas emoções" é usado também para justificar casos de feminicídio, por exemplo.

Harvey não assume os estupros e assédios, mas diz que "machucou pessoas." Mesmo se ele não for culpado, o que parece pouco provável, a desculpa do trabalho e da busca pelo sucesso não pode ser usada como justificativa. E o que todas essas mulheres sofreram por anos?

Se Harvey tem direito a um julgamento equilibrado? Sim, claro, todos têm. Mas que esse papo furado do homem "estressado" ou louco pelo sucesso não sirva para justificar crimes. Nem em Hollywood, nem no Brasil, nem em lugar nenhum. E não, uma mulher que abre a porta de um quarto não está aceitando ser estuprada. E isso devia ser óbvio.

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Sobre a autora

Nina Lemos é jornalista e escritora, tem 46 anos e mora em Berlim. É feminista das antigas e uma das criadoras do 02 Neurônio, que lançou cinco livros e teve um site no UOL no começo de 2000. Foi colunista da Folha de S. Paulo, repórter especial da revista Tpm e blogueira do Estadão e do Yahoo. Escreveu também o romance “A Ditadura da Moda”.

Sobre o blog

Um espaço para falar sobre a vida das mulheres com mais de 40 anos, comportamento, relacionamentos, moda. E também para quebrar preconceitos, criticar e rir desse mundo louco.