"365 Dias": sucesso da Netflix glamouriza Síndrome de Estocolmo e assédio
Universa
11/06/2020 04h00
Cena do filme "365 Dias", da Netflix (Divulgação)
Um homem rico e mafioso fica obcecado por uma mulher por cinco anos. A stalkeia. E, depois, a sequestra. O roteiro parece de um filme denúncia sobre abuso, mas não, "365 dias", o sucesso do momento no Netflix, é um filme erótico-romântico, daquela categoria "soft porn dirigido para mulheres".
O filme foi lançado essa semana e está causando muita polêmica. Na quarta-feira, chegou a ficar nos trend topics do Twitter. Muitos espectadores reclamam do filme. E com razão. Afinal, a "obra" romantiza a Síndrome de Estocolmo (o ato de se apaixonar pelo sequestrador, baseado em caso verídico que aconteceu nos anos 70). Mas antes fosse só isso. É pior. O personagem Massimo (Michele Morrone) também pratica abuso psicológico, assédio e chega perto de estuprar a personagem (tudo de um jeito "muito sexy").
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A mulher do filme, Laura (Anna Maria Sieklucka), apesar de independente, cai no jogo do bonitão gostosão. O sexo é incrível e todo o entorno também, com casas luxuosas, bailes, hotéis de luxo. É tudo tão absurdo que há quem diga que o filme é uma crítica a relacionamentos abusivos. Se for, foi mal feita, já que o tom crítico é difícil de perceber.
O auge do boy lixo
A sinopse já é absurda: um homem sequestra uma mulher e faz uma promessa: em um ano você vai se apaixonar por mim. E consegue! O príncipe encantado sequestrador e stalker é rico, por isso, o filme é cheio de cenas estilo Cinderela. Os dois vão, cercados de seguranças, para lojas de grife, onde ela compra tudo que quer. Tipo um sonho. Mas… espera? O sonho é ser sequestrada por um gostosão rico?
"365 dias" tem sido comparado com "50 tons de cinza". Faz sentido. Nos dois filmes, mulheres se apaixonam por gostosões manipuladores ricos e as cenas de sexo são quentes.
Mas será que, nós, mulheres, não merecemos filmes sensuais com enredos melhores e onde uma mulher não seja comprada e manipulada? Ou continuaremos sendo retratadas como mulheres que, na hora do sexo, gostam mesmo é de cafajeste? "365 dias" é isso: a atração pelo boy lixo levada ao extremo. O filme é tão ruim que parece piada.
Então, por que será que esse filme fez/faz tanto sucesso? Bem, por causa do sexo, que é quente e do entretenimento. E esse tipo de romance (por mais maluca que a história seja) sucesso há muito tempo. O filme lembra uma coleção que existia quando eu era adolescente: as revistas "Sabrina", que contavam histórias românticas, sensuais e rocambolescas para mulheres.
Prova do sucesso da fórmula. O filme, baseado no best-seller do mesmo nome, escrito pela polonesa Blanka Lipińska, está entre os mais vistos da Netflix em vários países do mundo todo, inclusive no Brasil.
Mas, alô, Netflix! O sucesso não significa que está tudo bem. Mulheres gostam, sim, de filmes com pegada sexy. Mas a gente merece mais. E romantizar abuso, o sequestro e o homem maníaco não ajuda o mundo em nada.
Se você quiser ver o filme como "estudo antropológico de um caso absurdo", vá em frente. Bizarrice ali não falta…
Sobre a autora
Nina Lemos é jornalista e escritora, tem 46 anos e mora em Berlim. É feminista das antigas e uma das criadoras do 02 Neurônio, que lançou cinco livros e teve um site no UOL no começo de 2000. Foi colunista da Folha de S. Paulo, repórter especial da revista Tpm e blogueira do Estadão e do Yahoo. Escreveu também o romance “A Ditadura da Moda”.
Sobre o blog
Um espaço para falar sobre a vida das mulheres com mais de 40 anos, comportamento, relacionamentos, moda. E também para quebrar preconceitos, criticar e rir desse mundo louco.