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Nina Lemos

Bonecas sem gênero da Mattel: o mundo mudou e até Barbie abandonou o rosa

Nina Lemos

03/10/2019 04h00

Divulgação/MattelA Mattel, a  gigante fabricante de brinquedos, é a nova inimiga da "família brasileira". Calma, contém ironia. Mas no mundo imaginário onde "meninas vestem rosa e meninos vestem azul", a companhia de brinquedos americana pode virar, na cabeça de alguns, uma empresa que destrói valores familiares sagrados da sociedade.

Explico. A empresa, responsável pela Barbie, a boneca loira e super magra que já foi considerada danosa para as meninas (afinal, quem tem um corpo daqueles? E, não, não faz sentido que meninas morenas e negras passem a vida brincando com uma boneca… loira) acaba de lançar uma linha de bonecas "sem gênero." Sim, isso mesmo. 

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Foram lançados esse mês seis modelos da "Creatable World": tem loira, morena, negra. Elas não tem peitos (como Barbie) ou músculos, como o Ken, São "lisas" e sem maquiagem ou lábios carnudos. Na verdade, parecem… crianças.

Todas vêm em caixas, com cabelo curto (meninos? ou meninas de cabelo curto? Quem for brincar escolhe!) com roupas e acessórios, entre eles, uma peruca. Saias, macacões, shorts de menino, estão ali em cada kit, para que as crianças possam montar a boneca do jeito que quiserem. Do gênero que quiserem: menina, menino, trans. Ou, simplesmente, homem de saia, menina de cabelo curto. As possibilidades são várias.

 

Ou seja, a Barbie, até ela, não veste mais rosa. E o Ken não veste mais azul!

Fim do mundo para os que acham que menina brinca de boneca, e menino faz arminha. E alívio para os que estão mais conectados com um mundo em constante mudança, onde "coisa de menina" e "coisa de menino" cada vez caem mais em desuso, ou parecem ideia de certas ministras de certos países ao sul do Equador. 🙂

A Mattel é uma empresa lucrativa. Então, claro, eles não lançaram essas bonecas porque eles são bonzinhos e querem mudar o mundo. Eles estão seguindo uma tendência internacional de NEGÓCIOS.  Eles querem lucrar, claro! Para ter o lucro, precisam se adaptar aos pais que não querem criar seus filhos em redomas, sejam elas rosas ou azuis. 

Esse não é o primeiro passo inclusivo da empresa. Em 2016, eles lançaram uma linha com bonecas mais gordas, mais baixas e também bonecas em cadeiras de rodas. Resultado: as vendas da empresa cresceram em 15%.

Segundo a empresa, depois de muitas pesquisas, eles perceberam que muitos dos pais mais jovens não querem criar seus filhos dentro dos padrões "menino é empreendedor", "menina é dona de casa". Eles querem, por exemplo, que os filhos cuidem de seus próprios filhos quando crescerem e lavem louça. E, por isso, estimulam que todos sejam mais livres para brincar.

Claro, uma das ideias dos criadores da boneca é contemplar também crianças que não seguem os padrões de gênero definido. Existem meninos que gostam de usar saia. E meninas que gostam de brincar de caminhão ou de Fórmula 1. Isso quer dizer que quando crescerem não vão se encaixar nos corpos em que nasceram? Não necessariamente. Em alguns casos, pode ser que sim. Em outros casos, definitivamente não.

Quando eu era criança, uma das minhas primas adorava brincar de Forte Apache e era louca por Fórmula 1. Lembro que, enquanto eu minha outra prima ganhávamos bonecas, ela pedia de Natal um capacete de Fórmula 1. Eram os anos 70 e, mesmo assim, nenhum dos presentes foi negado.

Bem, minha prima é hétero, casada há mais de 25 anos e mãe.  Era o GOSTO dela. Simples. Outro amigo, gay, uma vez pediu uma boneca para a mãe. Ganhou. Hoje ele é estilista. Gostava de brincar de vestir bonecas. Faz sentido, não?

Claro que muitos adultos vão ver a boneca da Mattel como uma ameaça. Mas, desculpem, isso é problematização de adulto, que em geral começa a ver um grande perigo onde não tem, como, por exemplo, em uma boneca.

Fiz um teste. Mandei as fotos das bonecas para a Janaína, minha afilhada de 10 anos. Detalhe: Janaína é uma menina bem padrão, teve fase princesa, teve fase rosa. Hoje, adora roupas e quer bombar no Instagram (como tantas meninas da sua idade).

"Jana, o que você achou dessas bonecas?"

"Lindas! Fofas! Eu compraria!"

"E o que você achou desse menino de saia?"

"Achei lindo. Acho certo."

Acabamos a conversa com uma promessa de que eu iria comprar uma dessas para ela de aniversário. Ela quer. Por quê? Simplesmente pelo fato de que a boneca é divertida.

Se agradar mais crianças (trans, meninas como a Jana, e até meninos que podem sim, gostar de boneca) a Mattel vai vender mais e mais brinquedos. Ou seja, a jogada, além de importante para quem quer que cresçam em um mundo mais colorido e livre, tem tudo para dar certo. Inclusive economicamente. 

Fim dos valores familiares? Não parece ser. E, ao invés de pirar, fiquem com a pureza da resposta das crianças. "As bonecas são fofas." E já pensou que legal se todas, independentemente do gênero em que nasceram, puderem simplesmente brincar? "Ah, mas filho meu não brinca de boneca". É mesmo? E se ele quiser?

Sobre a autora

Nina Lemos é jornalista e escritora, tem 46 anos e mora em Berlim. É feminista das antigas e uma das criadoras do 02 Neurônio, que lançou cinco livros e teve um site no UOL no começo de 2000. Foi colunista da Folha de S. Paulo, repórter especial da revista Tpm e blogueira do Estadão e do Yahoo. Escreveu também o romance “A Ditadura da Moda”.

Sobre o blog

Um espaço para falar sobre a vida das mulheres com mais de 40 anos, comportamento, relacionamentos, moda. E também para quebrar preconceitos, criticar e rir desse mundo louco.