E quem mora sozinho? Elas contam como é estar há dois meses sem ver ninguém
"A única pessoa com a qual me encontrei nos últimos dois meses foi a minha dentista. Quando contei para ela que estava há 50 dias sem ver ninguém, ela chorou", quem conta a história tragicômica é a psicanalista Camila Kfouri, 40 anos, de São Paulo. Ela, como muitas pessoas (14,6% da população brasileira, segundo dados do IBGE), mora sozinha. E, com a quarentena sendo estendida "até não se sabe quando" está a todo esse tempo sem sair na rua. As compras, faz online. Na rua, nunca mais foi. Tirando o tal dia em que teve que fazer um tratamento de canal.
Fazer um canal é tudo, menos prazeroso. "No dia que tive que sair fiquei muito assustada, mas ao mesmo tempo achei lindo dar uma volta. E, ao mesmo tempo, fiquei muito triste, porque tinha muita gente na rua." Camila faz parte do grupo de risco e já decidiu. "Não vou sair. Estou preparada para ficar o tempo que for necessário em casa."
Veja também:
- Alemanha começa a abrir. Mas a vida pós lockdown; não é nada normal
- Jana Rosa: "adotei novas avós e elas salvaram minha quarentena"
- Sim, as coisas estão péssimas e você tem o direito de ficar mal, sem culpa
O que não significa que esteja tudo bem. Inclusive, Camila acredita que não está tudo bem para ninguém. Como psicanalista, atende pacientes que passam por angústias parecidas com as dela. "Não tem como não estar angustiado nessa situação. Há muito tempo vejo o Brasil entrar em uma distopia. Mas a gente não estava preparado para o apocalipse."
Estar sozinha, para Camila, traz angústia. Mas ela não acha que sua situação seja pior ou melhor que a dos outros. "Não existe termômetro para avaliar o que é melhor ou pior. Não é uma competição. Todos estão passando por dificuldades, quem está sozinho, quem tem filhos em casa. Só não está sofrendo quem está em negação", afirma.
No caso dela, pesa a saudades de abraçar a mãe, de acompanhar o crescimento dos sobrinhos. "Mas ao mesmo tempo estou muito próxima das pessoas, porque essa situação me trouxe um sentimento de urgência, de falar para as pessoas que eu as amo. Pode parecer piegas, mas em uma hora dessas percebemos que o mais importante são as relações, o amor."
Camila não é de sair muito de casa, gosta de ficar sozinha. Mas a "proibição mudou as coisas." Agora, sente falta da rua e até de ir ao supermercado. "Sempre gostei muito da minha companhia. Mas o não poder sair muda a perspectiva das coisas. Como diz o Lacan, nada desperta mais o desejo do que a interdição" Aquilo que é proibido a gente quer. Eu sinto falta até de ir ao supermercado e, por exemplo, escolher um queijo que eu gosto."
Sem toque, mas não solitária
"Não toco em ninguém desde o dia 17 de março", diz a professora universitária Lilian Magalhães, de 65 anos, que mora em São Carlos (SP). Nas poucas vezes que saiu, foi ao supermercado e ao banco. Mas, mesmo assim, não se sente solitária. "Falo muito com meus dois filhos, com minhas amigas. Estou fazendo aulas de pela internet: de zumba e dança do ventre." Lilian também tem usado seu tempo para ajudar pessoas. "A situação está muito difícil. Então, limpei as minhas coisas, doei muito do que não precisava e contribuo financeiramente com quem eu posso. Além disso, por telefone, cuido da minha mãe, que tem 96 anos e mora em Campinas. Faço as compras pela internet para ela."
Apesar de não se sentir solitária, Lilian anda muito triste. "E sinto muita raiva também. O jeito que as pessoas estão sendo tratadas no Brasil, me causa muita revolta."
Lilian morou 16 anos no Canadá e acha, que por isso, se sente mais preparada. "Lá passamos o inverno em casa e aprendi a ser muito adaptável." Mas foi o jeitinho brasileiro que fez com que se aproximasse de uma vizinha durante a pandemia. "Só tínhamos nos falado uma vez, mas sabia que ela também morava sozinha. Logo no início, deixei um bilhete embaixo da porta falando que era para ela me procurar, que não estávamos sós. Agora, uma se apoia na outra. Trocamos bilhetes e conversamos por WhatsApp", conta.
"Outro dia queria fazer um pudim, mas não fazia sentido fazer só para mim. Então, fiz para nós duas e deixei metade de surpresa na porta dela. Em troca, ela me deixou uma flor." As duas já combinaram de se encontrar quando a quarentena acabar.
Melhor sozinha
A publicitária Mariana Jansen, de 30 anos, mora só há quase 15 anos e sempre gostou disso. Mas no momento, nem tanto. "É difícil, estou sozinha em casa desde 17 de março. Mas depois de ver meus colegas de trabalho tendo que lidar com filhos, família, cachorro, achei que estar sozinha nessa hora era a melhor opção,", diz.
Mari é do Maranhão e, no início da quarentena, recusou um convite do pai para que fosse ficar com eles. "E isso porque eu me dou bem com toda minha família", ri. Porém sozinha, diz ter mais controle. "Até me sinto mais segura, já que não encontro ninguém. Administro toda a minha proteção."
Mas é fácil? Não. "Tem o lado bom, se ficar triste, posso chorar, posso fazer a minha terapia em paz, o que me ajuda muito. Mas ao mesmo tempo, tenho que fazer tudo. As pessoas falam: 'ah, você não tem filho, não tem marido, é mais fácil.' Ah, mas por isso mesmo, também não tenho marido para me ajudar. Fico exausta. Tenho que cuidar da casa, trabalho mais de oito horas por dia. E também preciso cuidar de mim, né, preciso comer!".
Mas de modo geral, ela se sente privilegiada. "Moro em um apartamento bom, não perdi meu emprego. Só que isso não quer dizer que eu não pire", afirma. Para suportar, nos dias mais difíceis, desce para ler sentada ao sol no pátio do prédio e faz terapia.
"O mais assustador é não ter uma data para acabar. Mesmo se em dois meses a gente puder sair, tudo vai estar diferente, o mais difícil é não saber o que vai acontecer." A psicanalista Camila Kfouri conta que essa angústia é partilhada por quase todas as pessoas. "Estamos todos com muitas questões: o quanto eu suporto? Quanto tempo eu vou conseguir dar conta de mim? de trabalhar? cozinhar? e de todo o resto?". Ou seja: pirar é normal.