Comércio reabre na França e clientes lotam Zara. O mundo não ia mudar?
Nina Lemos
14/05/2020 04h00
O que você vai fazer quando acabar a quarentena? Muita gente se faz essa pergunta. Visitar os pais, ver os amigos, tomar uma cerveja no seu bar preferido. Essa semana, com a abertura do comércio em países como a França depois de 50 dias (o país, que teve um lockdown radical teve diminuição dos casos e por isso está "reabrindo aos poucos") muitas pessoas responderam a essa pergunta da seguinte maneira: elas foram às compras.
Não estou falando de ir ao supermercado. Mas de lojas de roupa, como Zara. E de lojas de luxo, como Louis Vuitton. Durante a semana, as filas na porta das lojas foram enormes em todo o país. E em outros lugares, como a Tunísia e o Líbano, também.
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Detalhe: a França registrou, segundo levantamento das autoridades no dia 12 de maio, mais 348 mortes em 24 horas. Quase 27 mil pessoas já morreram. Ou seja, assim como em toda a Europa, o vírus matou milhares e o perigo ainda está no ar (literalmente). Ir à lojas (locais fechados que reúnem pessoas em alta rotatividade) é PERIGOSO. Mas… "Eu sentia tanta falta de comprar", disse uma francesa para o site RT. Ela completou que não estava precisando de nada em especial, ia apenas "comprar algumas coisinhas". Tipo para matar a saudade.
É bom lembrar que o comércio não abre normalmente em nenhum país que foi atingido pela pandemia. As lojas abrem com restrições. Como, por exemplo, regras de distância social e número de pessoas que podem ficar dentro do local. Isso porque o risco de contágio ainda é muito grande. Com as lojas cheias, autoridades francesas já se preocupam que regras de isolamento social não estejam sendo cumpridas.
Sim, o ser humano, esse ser não evoluído, está disposto a arriscar a vida para comprar uma roupa ou um acessório de que não precisa. Um objeto de luxo é uma coisa urgente, que você precisa? Ou uma roupinha da Zara? (quem realmente precisava poderia ter comprado online).
Por que as pessoas fazem isso?
Comprar, para muitos, é um alívio de ansiedade e uma maneira de tentar preencher o vazio existencial que todos temos, um "tapa buraco."
Se funciona? Apenas para o sistema capitalista. Para a gente, não, já que logo sentimos vazio de novo e vontade de comprar algo mais. Pois é, a indústria da moda sobrevive em grande parte por causa do vazio existencial das pessoas.
A mesma coisa aconteceu na China. Depois de uma quarentena rigorosíssima, uma loja Hermés localizada em Guangzhou, uma das cidades mais ricas e mais populosas da China, abriu no meio de maio. O que aconteceu? Em apenas uma cidade a loja vendeu 2,7 milhões de dólares em um dia! O fato chocou pessoas do mundo todo.
Novo normal?
O choque faz sentido. Afinal, a gente anda falando, desde que esse horror começou, que as coisas vão mudar. E, como somos otimistas, pensamos: as pessoas vão desapegar, vão consumir menos. Ah, o novo normal não vai ter lugar para excessos.
Será? As pessoas que lotam as filas das boutiques de Paris mostram que não. Muitos continuarão comprando bobagem e alimentando uma cadeia que faz muito mal para o mundo (aumento da poluição e trabalho escravo são dois exemplos).
Outro detalhe que choca é: não existirão festas tão cedo. Então, para que você precisa comprar um sapato novo? Você precisa de novas roupas? Mas você vai ficar em casa! Sim, essa nova vida não tem prazo para acabar. Algumas cidades abrem comércio, mas se os números de novas infecções aumentar, as lojas fecharão de novo. E ter que ficar trancado em casa sem nem poder ir ao parque pode acontecer novamente em países que tiveram reabertura.
Talvez essas pessoas sintam que ir às compras no meio do apocalipse dê uma sensação de normalidade. Ou seja, elas brincam de normal.
Spoiler: você pode ficar fingindo. Mas a vida normal não existe mais. Aceite.
Sobre a autora
Nina Lemos é jornalista e escritora, tem 46 anos e mora em Berlim. É feminista das antigas e uma das criadoras do 02 Neurônio, que lançou cinco livros e teve um site no UOL no começo de 2000. Foi colunista da Folha de S. Paulo, repórter especial da revista Tpm e blogueira do Estadão e do Yahoo. Escreveu também o romance “A Ditadura da Moda”.
Sobre o blog
Um espaço para falar sobre a vida das mulheres com mais de 40 anos, comportamento, relacionamentos, moda. E também para quebrar preconceitos, criticar e rir desse mundo louco.