"O ódio é regado pelo ódio", diz padre Julio Lancellotti sobre ameaças
Universa
16/09/2020 14h39
Foto: Ricardo Matsukawa (UOL)
"Seu padre f. da puta, defensor de nóia." Padre Julio Lancellotti, conhecido pelo seu trabalho de apoio aos mais vulneráveis (no momento ele é coordenador da Pastoral do Povo e trabalha com a população de rua de São Paulo) estava trabalhando ontem no centro de convivência São Martinho, ao lado da igreja que comanda, quando ouviu essa ameaça. "Era um cara em uma moto, uma dessas vespas. Depois de gritar isso para mim, ele disse para um grupo de catadores de papel: "vou voltar para queimar vocês."
A ameaça levou o padre a gravar um vídeo no qual, acompanhado de moradores de rua, narra o ocorrido e diz: "se alguma coisa acontecer comigo, vocês sabem de quem cobrar."
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O ataque acontece depois do deputado estadual e candidato a prefeito Arthur do Val (Patriota), conhecido como Mamãe Falei, publicar no seu perfil do Twitter que padre Julio seria um "cafetão da miséria" e que teria um dossiê contra ele. Ontem, o padre registrou uma ocorrência na delegacia.
"Vivemos um tempo de polarização e de ódio", ele diz, em entrevista para Universa. "Não estou falando que o deputado vá fazer algo contra mim, ele não vai. Mas quando ele fala uma coisa dessas, alimenta o ódio contra mim."
Leia trechos da entrevista:
O que levou o senhor a gravar um vídeo e ir a uma delegacia registrar ocorrência?
Padre Julio Estava trabalhando na São Martinho, onde servimos almoço, e passou um sujeito em uma moto e gritou: "seu padre filho da p. seu defensor de nóia, você vai ver." E seguiu falando impropérios. Na sequência, disse para um grupo de catadores de papel: "vou voltar e queimar vocês." Isso aconteceu depois do candidato me atacar na internet, dizer que eu era "cafetão da miséria". A preocupação não é que o deputado vá fazer alguma coisa. O problema são seus apoiadores. Ele pode estar dando ideia para um desequilibrado. E está fomentando o ódio.
O ódio é uma semente que cresce em qualquer solo. Você rega com mais ódio. É isso que faz o ódio crescer. Vivemos um clima tenso de polarização. Eles podem plantar fake news, inventar que eu sou traficante. E podem acreditar. Quando quem fala é um youtuber ou o presidente da República, muitas pessoas acreditam, já que essa fala vem de um lugar de privilégio. Quando o presidente disse que as pessoas tinham que cobrar de quem tinha falado para ficar em casa, estava falando de quem? Quem falou para ficar em casa? Eu, os jornalistas, algumas Igrejas, os líderes comunitários…
O senhor já recebeu ameaças antes?
Padre Julio Já recebi muito ataque na internet, por telefone, na rua. São centenas. Já vi campanhas com o tema: "morte ao Padre Julio". Uma vez estava no hortifruti onde compro uma sopa para levar para casa depois do trabalho e uma senhora me disse: "padre, você fica defendendo bandido, nós vamos te matar." Eu disse para ela: "então vai ser muito fácil, já que não uso colete à prova de balas." Está tudo no Ministério Público. A Comissão Interamericana de Direitos Humanos mandou uma medida cautelar para o governo brasileiro, falando que precisavam investigar ameaças e me proteger. Queriam colocar escolta. Eu não quis. A proteção que eu quero é que os irmãos de rua não sejam torturados, que eles não sejam espancados. Aí, sim, vou poder parar. Enquanto isso não acontecer, não vou ficar em casa protegido com escolta.
Depois de registrar a ocorrência o senhor recebeu muitas mensagens de solidariedade, não?
Padre Julio Ah, sim. A onda de ódio gerou uma onda de solidariedade muito forte. Acho que marcou muito o fato de eu ter 71 anos e ser uma pessoa que mesmo assim está na linha de frente.
Como está sendo seu trabalho durante a pandemia?
Padre Julio Houve um momento geral de solidariedade. Pessoas passavam em frente à paróquia e acenavam. Foi muito bonito. Aconteceram coisas muito fortes. Trabalhávamos das 7h às 21h e em algumas horas eu entrava na cozinha da igreja para descansar. Um dia, me chamaram: "tem uma pessoa que quer falar com você". Era um rapaz que parecia ser morador de rua, com roupas muito simples, que me disse: "isso aqui é para o senhor". E me deu um cheque. Quando vi, era um cheque de 3 mil reais. Disse para ele: "você não pode me dar isso." Ele insistiu. Tempos depois depositei o cheque, achando que não teria fundo, mas ele foi compensado. Outra vez, um catador de papel me deu uma nota de 50 reais. Expliquei que não era para me dar, que poderia guardar para ele. Ele respondeu: "não, não tenho ninguém, quero dar para você". Isso me emociona.
Claro que também aconteceram desencontros. A população de rua é parte da sociedade e tem de tudo: gente que não quer usar máscara, que temos que explicar da importância… Só não tem gente que superfatura respirador ou adultera álcool-gel para vender mais. Isso eu te garanto que não tem.
Como está seu trabalho agora?
Padre Julio Quando as pessoas voltaram a trabalhar, o comércio reabriu e os ataques também voltaram. Passamos a Partilha, o ato de servir alimentos para a população de rua, para o São Martinho. Com a abertura, muitos voluntários voltaram a trabalhar. Então, eu não tenho mais, por exemplo, restaurantes me ajudando. Mas com doações conseguimos fazer muita coisa. Outro dia consegui comprar mil bermudas. Comprei também calcinhas e cuecas para doar para os moradores, assim como sabonete. Essas pessoas quase nunca ganham peças novas. A alegria deles de ganhar peças íntimas novas foi imensa!
Sobre a autora
Nina Lemos é jornalista e escritora, tem 46 anos e mora em Berlim. É feminista das antigas e uma das criadoras do 02 Neurônio, que lançou cinco livros e teve um site no UOL no começo de 2000. Foi colunista da Folha de S. Paulo, repórter especial da revista Tpm e blogueira do Estadão e do Yahoo. Escreveu também o romance “A Ditadura da Moda”.
Sobre o blog
Um espaço para falar sobre a vida das mulheres com mais de 40 anos, comportamento, relacionamentos, moda. E também para quebrar preconceitos, criticar e rir desse mundo louco.